A PALHETA

capítulo 3

 do curso de extensão universitária ministrado na UFRJ,

agosto/setembro de 1966

NOEL DEVOS

 

 

Esta parte do instrumento, que parece insignificante para muitos diletantes, é talvez o maior quebra-cabeça dos instrumentistas de sopro - principalmente oboístas e fagotistas. Podemos dizer que cinqüenta por cento da técnica do instrumentista depende da palheta. O artista pode possuir uma grande técnica, um instrumento esplêndido, mas sem uma palheta com um mínimo de qualidades ele se sentirá como um soldado ao partir para a guerra com sua arma no ombro, sem munição. Este mínimo de qualidades e condições resume-se no seguinte: uma palheta deve ser afinada, justa e ter som. Nos instrumentos como a flauta, o trombone, os lábios do músico tomam o lugar da palheta. Uma vez encontrada a posição correta, após pacientes e longos estudos, ele possuirá uma embocadura para a vida inteira, desde que se exercite diariamente. O fagotista, depois de haver feito os mesmos estudos de preparação, terá sempre o grande problema cotidiano da palheta.

A palheta dura pouco tempo e deve ser constantemente substituída. É muito raro se encontrar duas palhetas iguais em sonoridade e facilidade de emissão. No entanto, o fagotista deve possuir a mesma facilidade técnica, a mesma sonoridade. Enfim, deverá ter esta qualidade essencial: a facilidade de adaptação. Deverá possuir uma base técnica suficiente para corrigir as imperfeições da palheta. E esta base deve ser adquirida desde o começo dos estudos. O estudante não deve perder tempo tentando preparar a palheta ideal. Do contrário, perderá as poucas horas que dispõe para estudar, tornando-se um escravo da palheta. Neste caso, sendo quase impossível achar uma de acordo com os seus desejos, ele acaba se cansando e o estudo do fagote se torna um calvário cotidiano. Vejamos, pois, este problema na sua justa medida.

Muitas vezes os fagotistas encontram uma desculpa para suas deficiências pessoais, aos olhos de seus colegas e maestros, dizendo-lhes que a palheta "está ruim", não presta. Em alguns casos esta desculpa tem fundamento (embora o músico seja responsável também pela qualidade de sua palheta). Entretanto é uma desculpa já tradicional no mundo inteiro.

No Conservatório de Paris, meu mestre Gustave Dhérin resolveu este problema. Com a finalidade de evitar estas mesmas desculpas dos doze ou quatorze alunos, com os quais contava anualmente em sua classe, Dhérin os obrigava a ir à sua casa (pelo menos uma vez por mês) e ele mesmo preparava oito palhetas, diante de cada um, fazendo com que tais alunos as experimentassem até ficarem satisfeitos. Conseguiu com este sistema afastar o problema de suas aulas. Ninguém mais tinha o direito de culpar a palheta. Se alguma coisa não funcionava era por falta de estudo. Falei de oito palhetas por mês e isto pode talvez parecer absurdo. Entretanto, esta exigência de tocar com palhetas novas faz parte do princípio de adaptação do qual já falei antes. Se me perguntarem, se o aluno de fagote deve fazer as suas próprias palhetas eu responderei positivamente mas com uma condição: dele estar bastante adiantado na técnica do instrumento. Creio que um aluno iniciante, ao se preocupar paralelamente com o estudo do fagote e com o problema de construção de palhetas, perderá completamente o estímulo.

Já disse antes que não existem duas palhetas iguais em sonoridade, intensidade e facilidade. Todo bom fagotista deve possuir uma caixa de três a seis palhetas, já prontas para serem tocadas - ele mesmo pode classificá-las em função de seu trabalho. Algumas são melhores para as notas agudas, outras são fáceis para os graves; umas são homogêneas em toda sua extensão mas possuem sonoridade fraca. Há também as excelentes em todos os aspectos. Estas são muito raras e o instrumentista deve procurar conservá-las o maior tempo possível, tocando com elas só em casos excepcionais.

É interessante notar que o músico de instrumento de sopro em geral toca de certo modo em função da sala onde se encontra. Em um grande teatro ele tocará instintivamente com maior sonoridade, enquanto que numa sala menor sua interpretação será mais íntima. Para o fagotista esta observação é de uma grande importância, porque geralmente ele prepara sua palheta em função do local onde toca.

Sobre este problema de palhetas poderíamos ainda falar muito. Mas torna-se impossível, em tão pouco tempo, abordar todos os problemas técnicos (da palheta) que fazem parte dos estudos de cada dia do fagotista. Como o assunto é tão complicado, o mais interessante é trazê-lo à sua mais simples expressão: UMA PALHETA DEVE TER SONORIDADE E SER AFINADA.

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