Conversa de fagotista

- paulo justi -

   

 

Paulo Justi, "mesmo achando o fagote um instrumento limitado, o que por isso mesmo o transforma num desafio", é professor de fagote na Unicamp e na Escola de Música de Piracicaba. Foi por 20 anos fagotista na Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas e depois dessa experiência acha que é muito "melhor estar só do que mal regido". 

Seu mestrado abordou um pouco da história do fagote, da vida de Mignone e suas valsas para fagote solo. Em uma publicação de revista da USP teceu comentários sobre as Cirandas das 7 notas de Villa-Lobos.
Sua tese de doutorado é no campo da filosofia, onde enfoca a possibilidade de se falar em música bonita ou feia, se gosto se discute e temas afins... Esteve à frente na organização do III Encontro Brasileiro de Oboés e Fagotes, realizado em Campinas entre 15 e 17 de junho de 2006.

 

portal -  é um grande desafio organizar um Encontro de oboistas e fagotistas num país de dimensões como o Brasil. Como conseguiu?

Paulo Justi - A organização do III Encontro não foi difícil, creio eu, por duas razões básicas: a infra-estrutura que a Unicamp tem e a sorte de contar com uma equipe competente e de muita boa vontade. Da infra-estrutura cito: o hotel dentro do Campus; as salas de aula, o instrumental (piano, percussão) e os recursos de som e de informática (computadores, data-show, etc.) que ficaram à nossa disposição no Dep. de Música. Da equipe devo começar com a confecção da página, as fotos digitais, ao secretariado via web, à organização dos eventos artísticos, ao projeto para obtenção de fundos, que envolveram em resumo cerca de 10 pessoas, contando comigo e com o Lúcius *.

* Lucius Mota foi o coordenador artístico do III Encontro.

portal - Como sentiu a reação dos participantes do Encontro, seja por parte dos ainda estudantes, como dos já profissionais?
Paulo Justi - A reação dos participantes foi a mais feliz possível. O III Encontro teve uma abrangência de assuntos incrível. Além dos Master-Classes tradicionais de execução musical e palhetas, tivemos palestras com assuntos mais complementares como: fisiologia do corpo na execução musical; relatos de pesquisas de palhetas; construção de instrumentos; manutenção; concertos de altíssimo nível; expositores de equipamentos diversos para oboé e fagote; depoimentos, etc. Quer dizer, creio que deu para contentar a todos, já que algum assunto sempre estaria sendo interessante, dada a variedade oferecida. Entre os professores, o que me impressionou muito mesmo, foi a disponibilidade generosa de todos. Começando com a viagem que cada um fez por conta própria e continuando com a atenção dispensada aos alunos

 

portal - Como avalia o nível das atividades (master-class, recitais, palestras, etc,) quando vistos em relação a encontros de outras áreas ou a encontros da mesma área em outros países? 
Paulo Justi - Eu gostaria de comparar o III Encontro tanto com outras atividades musicais que ocorrem no país, quanto com encontros de outras áreas. Por razões que não são de minha responsabilidade, o Encontro está se tornando um modelo exemplar, quando comparado a Festivais de Música, por exemplo. Nos Festivais você seleciona alunos, escolhe os “melhores” sendo, portanto, excludente. O Encontro é includente, todos são bem-vindos, não há seleção. A quantidade de professores e a intensidade do contato permitem que o aluno resolva em pouquíssimo tempo problemas particulares de toda ordem, não só performáticos. Não sou contra Festivais, mas não se pode aprovar a linha pedagógica seguida atualmente. O Encontro não deve nada aos de outras áreas. Nós músicos é que por preguiça, desinteresse e talvez arrogância não traduzimos para a língua falada na Universidade o que fazemos.

 

portal - como assim?
Paulo Justi - Veja, o Encontro reuniu os melhores professores de oboé e fagote do país, que são também os melhores intérpretes. Mas reuniu também os melhores pesquisadores nestas áreas. No entanto, em nenhum momento, as questões teóricas, quer de fisiologia da respiração, quer da física dos instrumentos e das palhetas, quer do depoimento do Prof. Devos sobre Villa-Lobos, quer da saúde do instrumentista, ficaram distantes da vida do aluno. Tudo o que foi tratado despertou um enorme interesse, porque faz parte do dia a dia do músico. Este, creio eu, é o maior mérito do Encontro.

 

portal - e o que pretende dizer com "língua falada" na universidade?
Paulo Justi - Mas por que falei de traduzir para a língua falada pela Universidade? Porque cada tema tratado no Encontro poderia se tornar um artigo científico de primeira linha e nós músicos não gostamos de trabalhar nisto. O Encontro tem material para produzir uma bela revista e, que isto não aconteça, é uma pena. Para os próximos Encontros, talvez possamos pensar nisto, não só para termos um arquivo do que foi tratado, mas também para termos credibilidade tanto junto às agências de fomento quanto às Universidades. O Encontro foi tratado pela Unicamp como um evento de extensão e não de pesquisa, mas a culpa é minha que nem sabia do potencial. 

 

portal - Encerrado o III Encontro Brasileiro de oboés e fagotes, qual o balanço que faz do mesmo?
Paulo Justi - O balanço do Encontro é totalmente positivo. Algumas coisas podem melhorar, por exemplo, se conseguirmos hospedagem também para os alunos, ou pelo menos para os que mais precisam.

 

portal - agora, falando de Paulo Justi, como se deu seu encontro com o fagote?
Paulo Justi - A música me encontrou num colégio interno. Havia um velho piano que se mostrou encantado para os meus onze anos. Enquanto os colegas ansiavam pelo intervalo para o futebol, eu ansiava pelo piano. Em pouco tempo eu era mais um organista, ou melhor harmonista (alguém sabe o que é um Harmonium?). Saído do seminário, fui estudar num colégio Salesiano, onde além de ser o organista das funções religiosas e casamentos, tornei-me o ensaiador dos sopros da fanfarra, tocando cornetão em fá. Comprei um trompete e já tocava a Canção do Marinheiro “Qual Cisne branco que em noite de lua” quando me dirigi à Escola de Música de Piracicaba, pois sonhava em tocar trompete na orquestra. O Maestro Mahle me recebeu com a característica franqueza: “Não! Mais um trompete???”. “Olha aqui, temos três instrumentos que ninguém quer e que por isso oferecemos bolsa de estudo: o contrabaixo, o trombone e o fagote; venha experimentá-los e escolha um deles, pois trompete já temos muitos”. Fiquei fascinado com o fagote. E assim tudo começou.

 

portal - onde e com quem estudou?
Paulo Justi - Meu irmão já tocava oboé na época, então, foi tudo muito estimulante. O Maestro Mahle foi meu primeiro professor de fagote e os Festivais de Curitiba, Brasília, Salvador e Campos do Jordão a necessária complementação. Meu irmão foi para a Alemanha e um ano após eu o segui. Tive o privilégio de estudar em Hannover com o Prof. Klaus Thunemann durante dois anos e ao retornar ao Brasil entrei para a Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas e logo após, na Unicamp. Na Orquestra fiquei vinte anos. Deixei-a porque mesmo tardiamente resolvi seguir a carreira universitária. Fiz o mestrado na USP com o prof. Oliver Toni e estou terminando o doutorado na Filosofia da Unicamp.

 

portal -  V. toca um fagote Heckel. Existe quase sempre uma pequena história do  fagotista em relação ao seu Heckel. Como foi a sua?
Paulo Justi - Graças a família Mahle, tanto de Piracicaba quanto da Alemanha, pude comprar um belo fagote Püchner, escolhido pelo professor Helman Jung, de Detmold. Um dia, o inspetor da orquestra de Campinas, o João de Pieri, me disse que alguém ligara para vender um fagote velho. Eu lhe dissera que fagote não se compra velho, com exceção talvez, do Heckel, mas que a chance de haver um Heckel em Campinas era tão remota que nem valia a pena conferir. O próprio João ligou de volta ao proprietário do fagote e este confirmou, era um Heckel. Eu disse ao João, "você entendeu errado, mas vamos ver". O fagote era um Heckel de número 7632, presumo que anterior à II Guerra, modelo estudante. Comprei o fagote e mandei-o para a fábrica para uma revisão completa. A revisão custou 4.000 dólares. Após a revisão, tive que escolher entre o Heckel e o Püchner. Coloquei meus irmãos numa sala, todos de costas para mim, enquanto eu tocava ora um ora o outro, para me ajudarem a escolher, já que ambos me agradavam muito. O Heckel foi o mais votado, mas deixo claro, foi por uma questão de timbre, algo um pouco mais brilhante, característico da marca. Vendi o Püchner para pagar a conta, com tristeza, pois gostava dele.

 

portal - São muitos os fagotistas, profissionais ou ainda alunos, que tem Paulo Justi como centro de referencia. Como é seu relacionamento aluno-professor, professor-aluno?
Paulo Justi - Não me sinto absolutamente “centro de referência” de coisa alguma. Eu me sinto professor por vocação, uma palavra que não se usa mais, mas assim como a música me encontrou, a vocação para professor me escolheu. Só que eu não acho que o professor é responsável por grande coisa, não. O professor é um indicador de caminhos. Quem caminha é o aluno. O bom professor é aquele que não atrapalha. No máximo dá sugestões, discute idéias e principalmente não se sente dono do aluno. Não se pode ser dono do que é livre por natureza. O aluno voa por asas próprias, cabe ao professor apenas saborear o desenho do vôo. O professor deve ter em mente que ele mesmo é um eterno aprendiz e que aprende sempre e muito com seus alunos. Uma vez numa avaliação de professores feita pelos alunos da Unicamp, eles me criticaram por eu ser pouco exigente. Confesso que fiquei orgulhoso, achei um elogio. Se eu fosse convidado a citar alguma qualidade minha como professor, sem dúvida, em primeiro lugar citaria o bom humor

 

portal - Quais são, no momento, suas atividades como fagotista?
Paulo Justi - Atuo pouco como fagotista. Dou uma ajuda sempre que precisam, em Piracicaba, Americana e Rio Claro. Estou mais dedicado às disciplinas teóricas do curso de música da Unicamp, a Semiótica e a Estética e Introdução à Filosofia e a terminar minha tese de doutorado na Filosofia sobre a música em Emanuel Kant. Desejo ocupar um espaço ainda vago da Universidade que chamo de Reflexão sobre a Música. Isto porque acredito que o melhor pensador da Música é o músico. Nosso problema é que, muitas vezes estamos tão conscientes de nossa supremacia de músicos, que somos arrogantes ao nos negarmos a fazer outra coisa que não seja tocar.

 

portal - planos futuros?
Paulo Justi - Depois deste III Encontro pretendo voltar à minha pacata quase monástica vida. Uma tranqüilidade que tem data para ser interrompida. Em algum momento, o telefone tocará e ouvirei: “Paulo, aqui é o Lucius”. E estaremos organizando o IV Encontro; lá se irá meu sossego, mas valerá a pena, como valeu desta vez e sou grato ao Lucius por isso...

 

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