CORREIO BRAZILIENSE

14 de junho de 2003

por RENATO ALVES

 

    Numa chácara do Lago Norte, Hary Schweizer, 56 anos, cultiva duas paixões. No barracão, rodeado por pés de jabuticaba, banana e mamão, fabrica fagote, instrumento musical de sopro pouco comum no Brasil. Do outro lado do terreno de 16.700 m², num pequeno alambique, Hary tira cachaça para curtir com amigos e parentes.

    Esse filho de alemães, músico e fundador da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional de Brasília, é o único fabricante de fagotes na América Latina. Faz o instrumento há 12 anos. No sossego de sua chácara, ao lado do Varjão do Torto, Hary busca inspiração em meio ao bosque do terreno

    Desde que fez o primeiro fagote, em 1991, Hary só aprimora a técnica. ‘‘Meu instrumento pode não ser tão bom quanto o importado, mas com ele os músicos conseguem tocar qualquer clássico’’, garante o artesão, que já teve seu trabalho divulgado por revistas especializadas da Europa.


    Hary encara a fabricação de fagotes como um ‘‘hobby profissional’’. ‘‘Faço e conserto instrumentos quando tenho tempo e paciência. Não trabalho sob pressão’’, avisa. O ofício ele aprendeu por necessidade própria e dos alunos e colegas da UnB e da Orquestra Sinfônica. ‘‘Com o meu trabalho, tento tornar o fagote mais acessível’’, justifica.

    Para fabricar o instrumento, Hary teve que aprender a trabalhar com madeiras, metais, vernizes, furadeiras, tornos, pistolas de tinta. O ofício requer muita paciência e habilidade. São mais de 80 furos na madeira, em lugares exatos, para que o instrumento de 2,65 m consiga a afinação correta. E 65 peças de metal, que formam as chaves e o mecanismo do fagote e ajudam o músico a criar as notas. O instrumento de Hary é produzido em imbuia.

    Já a fabricação de cachaças surgiu por acaso. Quando comprou a chácara, há 20 anos, o canavial alimentava a única vaca do antigo dono. ‘‘Vendido o animal foi montado o alambique para aproveitar a cana.’’ A arte de fazer cachaça ele aprendeu nos livros.

Alemães
    Apesar do nome e dos traços alemães, Hary nasceu no Brasil, na cidade de Mafra, interior de Santa Catarina. Seu pai Antonio chegou da Alemanha em 1933. Fugia da miséria provocada pela Primeira Guerra Mundial. No Brasil, Antonio e um grupo de alemães ganharam pequenos pedaços de terras no meio do mato. ‘‘Plantar não era para o meu pai. Ele começou a vida no Brasil tocando sanfona em festas. Depois, partiu para a fabricação de bebidas.’’ Antonio fazia vinho de laranja e aguardente de pêra, bebidas comuns na Europa. Tornou-se um empresário bem-sucedido. Conheceu e casou-se com Marta, que já tinha dois filhos de um primeiro casamento, também vinda da Alemanha. Hary foi o segundo filho de Antonio com Marta.

    Antonio queria que todos os filhos seguissem seus passos. Mas Hary tomou outro rumo. ‘‘Meu pai nunca me apoiou totalmente" Por ironia, Hary conheceu a música clássica nos discos de vinil do pai. O gosto de Hary pela música aumentou quando passou a ter aulas de piano em um colégio comandado por padres.

    Mesmo sem apoio, Hary não desistiu do sonho. Para estudar música, foi para Curitiba (PR), distante 100 km de casa. Sobrevivia com o salário de auxiliar de contabilidade em uma cerâmica. Trabalhava meio expediente para se dedicar à música o restante do tempo.

    Quando foi continuar seus estudos na Alemanha,na despedida Antonio deu 5 mil marcos alemães para o filho. ‘‘Era toda sua economia do período de guerra. Ele me disse que era para comprar meu instrumento, mas que não sabia se o dinheiro ainda valia.’’ O dinheiro do pai não só valia como foi a conta para o primeiro fagote do filho.

Destino
    Na Alemanha, Hary conseguiu o primeiro emprego no Brasil. Na loja de discos em que trabalhava como vendedor, em Munique, conheceu um quarteto de músicos brasileiros, que estava em turnê pela Alemanha. ‘‘Eles disseram que precisavam de um fagotista para a Universidade de Brasilia. Claro que aceitei.’’

     Logo que acabou os estudos na Alemanha, em 1977, Hary veio para Brasília. Chegou à capital casado com Sofia, uma alemã. O músico ajudou a fundar a Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional. Teve quatro filhos brasilienses — dois casais. Tornou-se professor de música e de fagote da UnB, função que largou para se dedicar apenas à orquestra e à fabricação do instrumento que teve origem na renascença italiana.

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