obras de compositores brasileiros

para fagote solo

dissertação de mestrado, UNI-RIO, 1999

ARIANE PETRI

 

ESCOBAR, AYLTON (*1943, São Paulo, SP)

Cantares para Airton Barbosa (1983, Rio de Janeiro)

No título, a obra apresenta a dedicatória a Airton Barbosa. No subtítulo está escrito: “para valdinha, companheira97; para noël devos, mestre-amigo; para os herdeiros desta fé”.

Obra comissionada pelo Pro-Memus (INM/MEC-FUNARTE) como peça de confronto para

fagotistas no II Concurso Nacional "Jovens Intérpretes da Música Brasileira" em 1984.

Estreada durante o Concurso pelos participantes

Partitura editada pela FUNARTE

Gravação: Jovens Intérpretes da Música Brasileira, II Concurso Nacional 1984, Peças de

Confronto, Vol. III. FUNARTE, MMB 86.050, Rio de Janeiro 1986. Artista executante: Aloysio Fagerlande.

Em um movimento

Duração: 3’45’’

A bula que acompanha a partitura explica os sinais de grafia usados para os efeitos especiais empregados na peça, como multifônicos, oscilação de certos sons em quartos-de-tom e posiçõesalternativas para uma mesma nota, que provocam mudança de timbre. Os sinais de grafia usados seguem os sugeridos por Bruno Bartolozzi,98 que concebeu novas técnicas para os instrumentos de madeira, apresentadas e organizadas metodologicamente no trabalho de Penazzi.99 No caso das indicações para os multifônicos, o conhecimento desse trabalho é pressuposto por Ayton Escobar, já que ele não anexa uma explicação própria da numeração das chaves do fagote. Sem ela, o fagotista tem que recorrer à de Bartolozzi/Penazzi, que não é a única possível.

Exemplo 70: indicação de digitações variadas na bula

  

98 BARTOLOZZI, Bruno. New Sounds for Woodwind. London: Oxford University Press 1982.

99 PENAZZI, Sergio. Metodo per Fagotto. Coleção Bruno Bartolozzi - Nuova tecnica per strumenti a fiato di legno.

Milano: Edizioni Suvini Zerboni (sem data).

Ilustração nº 4: numeração das chaves por Bartolozzi

A música não é dividida em compassos. Mesmo assim, por fermatas, tessituras diferentes, pausas e cesuras, os agrupamentos são facilmente reconhecíveis. Seções mensuradas alternam com outras não-mensuradas. Justamente nessas últimas são usadas técnicas contemporâneas como multifônicos e as posições alternativas acima mencionadas. São muitas as indicações de dinâmica, diferenciadas minuciosamente, do ppppp ao ff, e de caráter ou andamento. Do ponto de vista formal, a peça é composta a partir de uma célula apresentada logo no início. Trata-se de uma segunda menor descendente, cuja primeira nota tem oito vezes o valor da segunda. Esta célula, ao longo da composição, será variada por:

- alteração de valor (mesmo mantendo o maior valor da primeira nota em relação àsegunda)

- acréscimo de appoggiaturas superiores e inferiores (de uma até muito mais notas)

- modificação da dinâmica

- agrupamento de duas ou mais células

- transferência para outras oitavas.

Conforme depoimento de Devos, que esteve em contato com o compositor durante a criação da peça, as appoggiaturas e os gestos ornamentais usados são a imitação de notas em pizzicato ou arpejos tocados num violão. A ligação entre o fagote e o violão se materializou através de Airton Barbosa, fagotista da Orquestra Sinfônica Brasileira e violonista nas horas de lazer, de quem Escobar era amigo. A menção de Barbosa no título da peça é uma homenagem a este músico que morreu, ainda jovem, em 1980.

Chama atenção o fato de no Cantares, como um todo orientado para a linguagem universal, aparecer um trecho que se utiliza de uma escala modal, o que, dentro do contexto, é um momento imprevisto. Com isso, a obra concretiza a possibilidade de convivência do universal com o nacional.

A peça apresenta-se em forma ternária, com exposição (1ª pauta), desenvolvimento (2ª a 5ª pautas) e conclusão com codeta (a partir do sentito comm’in principio), formando, num todo, sete subseções. De uma para uma outra subseção, a célula pode apresentar-se com notas diferentes: fá-mi, ré b-dó, si b-lá. Mesmo nas subseções que contém material sonoro novo, esta célula aparece em seu meio.

Em seguida faremos observações mais detalhadas de cada subseção:

1ª subseção (1ª pauta): Exposição e variação da célula motívica fá-mi

A célula motívica é exposta em pp e, depois de uma fermata, seguida por sete variações, todas em p ou pp com indicação de crescendo/decrescendo. As transformações são feitas, na ordem de seuaparecimento por:

- acréscimo de appoggiaturas à primeira nota

- inclusão de notas estranhas no meio da célula

- separação da segunda nota da célula principal

- configuração rítmica diferente a cada vez

- transposição da célula uma oitava abaixo.

A sétima variação tem o mi separado do fá por pausa e cesura. Além disso, o valor do mi não é mensurado, mas prolongado por uma linha de continuidade. O timbre deste mi sofre alterações por oscilação de quartos-de-tom e por sons resultantes de posições alternativas.

2ª subseção (2ª pauta ao o energico (inclusive): Transposição da célula para ré b-dó

Nesta subseção, introduzida por um gesto ornamental, quatro das cinco variações formam um grande decrescendo do f até o ppp, embora a quinta cresça do ppp até o ff. A célula, aqui formada por ré b-dó, é apresentada em três oitavas diferentes. Na quinta variação, a primeira nota do gesto ornamental final (dó com acento) representa a nota de resolução da célula. Todas as vezes, a célula é apresentada em soluções rítmicas diferentes.

3ª subseção (depois do energico ao cedendo (inclusive): Novo material sonoro

A primeira parte desta subseção apresenta sons multifônicos. A segunda (agitato assai), ligada a anterior por um extenso gesto ornamental em ff, tem como base uma terça menor (do#-mi que atravessa vários níveis de dinâmica, do pp até o ff. Ornamentos antecedem cada aumento de dinâmica, destacando-se por sffz em relação ao tremolo. O crescimento da dinâmica é acompanhado do aumento do número de notas ornamentais e da diminuição do valor do tremolo. A impressão geral é a de um aumento de intensidade. Esta passagem conduz ao furioso, formado por tremoli curtos em terças e segundas, descendo do dó#-mi ao trítono fá-si. Ao final do descrescendo e do cedendo é reapresentada a célula motívica fá-mi.

4ª subseção (início da quarta pauta ao início da quinta pauta, antes do sentito comm...): Contraste timbre-ritmo

A subseção é dominada pelo contraste entre notas longas, submetidas a alterações de timbre por oscilação e posições alternativas, e estruturas rítmicas com grandes saltos. Este contraste se repete duas vezes. Quando as notas sustentadas aparecem pela terceira vez, transformam-se em multifônicos. O intervalo de segunda menor e a sua inversão, a sétima maior, continuam aparecendo no meio do material novo: No più lento temos ré-dó# e logo em seguida dó#-dó, intervalo de sétima maior que pode ou não ser considerado como transformação da célula motívica.

5ª subseção (sentito comm' in principio ): Reexposição da célula fá-mi e variações

Já o título sentito comm' in principio faz a ponte entre esta subseção e o início. Ela traz a reexposição da célula fá-mi com três variações. Essas apresentam novamente mudanças por ornamentação, dinâmica e inclusão de notas estranhas.

6ª subseção (cantando e cantando tristemente): Interlúdio tonal

O cantando e o cantando tristemente são os únicos trechos da peça que fazem lembrar uma tonalidade, o modo eólio no cantando e hipolídio no cantando tristemente, ou a escala usada na música nordestina com a quarta aumentada e a sétima abaixada. Segundo Devos, trata-se no cantando tristemente de um canto do Recife que Barbosa cantava.

Exemplo 71: escala hipolídica (escala nordestina)

Novamente a célula motívica está presente: A partir da segunda ligadura aparece uma descida de segundas: sol b-fá, duas vezes fá-mi, voltando ao sol b-fá.

Na linha mais plana do cantando tristemente os ornamentos, sempre lembrando arpejos do violão, ganham significância. Na sexta pauta elas precedem notas isoladas, cuja última (si b) resulta no lá, reconstituindo a célula motívica.

7ª subseção (última pauta, a partir do segundo si b-lá): A célula si b-lá variada

A reapresentação variada da célula ocorre quatro vezes: a cada vez o grupo ornamental perde notas e fica mais lento. As pausas entre as células transformam-se em cesuras e ganham fermatas. O si b é alongado, até que o processo calando chega ao ponto em que o si não resolve mais no lá.

A peça termina com um si b que diminui até o 'nada', o ppppp. A peça é bastante difícil não só no sentido da virtuosidade, mas também no da sonoridade, no domínio do som e das diferentes cores exigidos do intérprete para sua execução. Além destas exigências, que são comuns em peças para concursos, Escobar trabalha ainda efeitos especiais.

Segundo Devos, na época, ele emprestou o citado método de Penazzi a Escobar,100 que extraiu dele a maneira de anotar e indicar “as digitações variadas que modificam o timbre do mesmo som”101, ou dos outros efeitos acima citados. Como esse método é elaborado para o fagote alemão, as posições e dedilhados indicados servem somente para este sistema. “No caso de se utilizar um fagote do sistema Buffet (francês), serão necessárias algumas alterações […].”102 Os dedilhados para os multifônicos, a oscilação em quartos-de-tom e as modificações de timbre são bem escolhidos e dão resultados satisfatórios no fagote alemão. Um trecho tecnicamente difícil é o agitato assai com o furioso na terceira pauta, por causa dos tremoli. Ainda é possível facilitar o tremolo dó#-mi substituindo a posição normal do mi 3 pela posição normalmente usada para o mi 2. Porém, no furioso aparece uma descida de tremoli na qual não há muito o que alterar. Outra dificuldade é a alta velocidade de partes dos grupos ornamentais escritos em non legato, exigindo um staccato leve e muito rápido. A peça também requer uma rigorosa precisão rítmica dentro dos agrupamentos separados por fermatas e cesuras. Pelas razões expostas, o grau de dificuldade foi avaliado como nível avaçado II.

Em um dos encontros que tivemos com Devos,103 ele fez observações sobre a interpretação desta peça e falou dos pedidos do compositor. Segundo esse depoimento, é necessário separar bem a appoggiatura (que, quando formada por uma única nota, leva indidação de staccato) da nota principal, “tocando como se a pessoa estivesse com soluço”. A nota que finaliza cada célula, geralmente uma semicolcheia seguida por pausas, tem que ser executada muito curta, cortada. As mudanças de dedilhado nas oscilações e nas mudanças de timbre precisam ser feitas com cuidado, criando a impressão de estar ”flutuando nas nuvens.”

Para oboé solo existe, do mesmo autor, o Pequeno trecho de discurso (com 2’15’’ de duração), peça com muitas afinidades com Cantares, na qual Escobar parte do mesmo material inicial (a célula fá-mi), que, em seguida, também é transposta para ré b - dó, para depois tomar outros caminhos, sem deixar de voltar por várias vezes para o semitom fá-mi. Sobre o Pequeno trecho

Escobar escreve, na contracapa do disco realizado por Ricardo Rodrigues104, palavras que podem servir também como caracterização de Cantares: “um solilóquio em que paira uma leve esperança; o intimismo nas poucas palavras conseguidas de um discurso poético perdido no ar dos pensamentos incompletos.”

 
97 Valdinha é a esposa do Airton Barbosa.

98 BARTOLOZZI, Bruno. New Sounds for Woodwind. London: Oxford University Press 1982.

99 PENAZZI, Sergio. Metodo per Fagotto. Coleção Bruno Bartolozzi - Nuova tecnica per strumenti a fiato di legno. Milano: Edizioni Suvini Zerboni (sem data).

100 DEVOS, Noël. Comunicação pessoal, 5/10/1999.

101 ESCOBAR, Aylton, na bula que acompanha Cantares.

 

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