obras de compositores brasileiros

para fagote solo

dissertação de mestrado, UNI-RIO, 1999

ARIANE PETRI

 

MIGNONE, FRANCISCO (1897, São Paulo, SP - 1986, Rio de Janeiro, RJ)

Sonatina para fagote solo (1961, Rio de Janeiro)

Obra dedicada a Noël Devos

Estreada por Noël Devos, no Teatro Guaíra em Curitiba, em data desconhecida

Partitura em manuscrito

Em três movimentos:

I - sem título (Moderato, MM mínima=112)

II - Andante (Andante meditativo, MM semínima=69 a 72)

III - Giga (Allegro, MM semínima pontuada=126 a 132)

Duração: total netto: 6‘15’’; I - 3’30’’, II - 1‘15’’, III - 1‘30’’

Normalmente, uma peça dodecafônica é baseada em uma série, formada pela ordenação de doze sons. Esta série, ao longo da peça, é sujeita a operações de transposição, inversão e retrogradação, reinterpretando-a o tempo todo, sem afetar o seu conteúdo. Uma vez estabelecida a série, ela setorna a estrutura referencial básica.

Na Sonatina para fagote-solo de Francisco Mignone, o procedimento é outro, apesar de trabalhar também com séries de doze sons. Em vez de modificar sempre uma única série pelas operações mencionadas, Mignone encadeia várias séries independentes. Nem sempre uma série aparece mais de uma vez, é até mais comum encontrarmos diferentes séries escritas em seqüência. Na maioria dos casos, não é possivel estabelecer relação alguma entre elas. Nos casos em que há trabalho sobre uma série, a forma de trabalhá-la difere bastante de um movimento para outro. Por isso, vamos observar cada movimento separadamente.

No primeiro movimento, o número de séries reaproveitadas é ínfimo. Quando isto ocorre, a repetição (seja em que tipo de operação) se dá logo em seguida à apresentação. Não existe casos de séries distantes que apresentem algum tipo de relação. Várias séries estão incompletas (falta de uma ou até duas notas), outras contêm notas repetidas. Há ainda notas isoladas "sobrando", que não fazem parte de nenhuma série completa e, em alguns casos, são subséries da série anterior. Já outras notas pertencem a duas séries, integrando o final da anterior e o início da seguinte. Nesses casos, as séries se entrecruzam. Tais ocorrências dificultam a formação de séries completas, criando até situações de ambivalência.

E A Eb B C# F Ab Gb C Bb D G

D G Bb Gb F B C G# C# D# E

Exemplo 61: Séries entrecruzadas (c. 15.2-20); a 2ª série é incompleta, falta a nota A

As operações básicas às quais uma série ou uma subsérie são submetidas, quando reaproveitadas, são as seguintes:

- Repetição sem modificação.

- Retrogradação de uma série (Exemplo: O: c. 38.3.2-40.4.1, R: 41-41.3).

- Deslocamento de subséries. Exemplo: uma subsérie que começa no elemento B é reencontrado a partir da posição 5 da série seguinte.

B Bb Gb Ab Eb G C F D E C# A

A C# D E B A# F# G# D# G C F

Exemplo 62: c. 31.4-38.2

-Os elementos contíguos da série são trocados.

Bb  F# B  E D  Db F  Ab G  Eb C A

Bb  B F#  D E  F C#  G Ab  Eb C A

Exemplo 63: c. 60.4 -71.1.1

Apesar da técnica dodecafônica, nesta obra a estruturação fraseológica é feita de modo convencional, quase clássica. Vejamos alguns exemplos: o primeiro grupo temático (c. 1 c.a. - 8.3) é um período binário regular, cuja primeira frase é subdividida em duas semifrases (ou dois movimentos) descendentes, enquanto o segundo reúne um movimento ascendente e outro descendente. O segundo grupo temático apresenta uma estrutura similar (c. 30 c.a.–38.2), com dois, dois e cinco compassos, fazendo lembrar uma marcha. Nos c. 42.3.2 a 46.3 temos uma estrutura quase barroca: seis semicolcheias formam uma anacruse para três colcheias que pontuam com o intervalo de oitava descendente. No compasso seguinte, isto se repete igualmente. Só a terceira vez resulta diferente e a música segue. A impressão que se tem em relação à fraseologia é a de superposição de séries de doze sons em frases que poderíamos encontrar também em obras não-dodecafônicas. Nas primeiras pautas da partitura, as frases musicais ainda estão de acordo com os inícios e términos das séries (c. 1-12.3), contudo logo não há mais congruência entre as frases e a estrutura de doze sons.

Do ponto de vista rítmico, esta peça parece bastante uniforme, comparada à riqueza rítmica das obras nacionalistas do autor. Até o c. 33 temos praticamente movimento só em semínimas e colcheias. Depois a rítmica é enriquecida por semicolcheias e quiálteras de cinco semicolcheias. Encontramos síncopes somente na última seção, a partir do 71.4.

Apesar do título Sonatina, o primeiro movimento (em forma A/A’) dificilmente pode ser considerado uma forma sonata convencional. Até poderíamos entender os dois complexos temáticos como partes de uma exposição, no entanto, a elas não se seguem, de forma clara, nem um desenvolvimento nem uma reexposição. O Lento (c. 61-65) se distingue pela nova indicação de compasso (3/4), pelo andamento e pela evocação do ritmo de valsa, funcionando como uma transição curta. Volta o "1º tempo", porém mostra-se difícil estabelecer relações temáticas com a primeira seção, embora, remotamente, possam ser apontadas afinidades entre diferentes células da primeira e segunda seções.

O segundo movimento (Andante) baseia-se em três séries, A, B e C:

OA: Bb Db Ab D Gb C E A Eb G F B (c. 1-5.3)

OB: C D Db F B Eb E F# G# Bb G A (c. 8.3-11.4.1)

OC: C B C# Bb Eb Gb Ab G E D F A (c. 17-19.1.1)

A e B são apresentadas na ordenação original e na forma retrógrada:

c. 1 a 5: A

c. 6 a 8.2: RA (elementos 2 a 9)

c. 8.3 a 11.4.1: B

c. 11.4 a 13: RB(elementos 2 a 12)

c. 14 a 14.2: B(elementos 8 a 12)

c. 14.3 a 15.1.1: B(elementos 1 a 10)

c. 17 a 19.1.1: C

c. 19.2 a 19.4.1: C(elementos 1 a 5 reordenados)

É importante dizer que todas as appoggiaturas e algumas notas de passagem com duração muito curta não podem ser consideradas como elementos das séries. A função delas é somente fazer ligação entre os intervalos. As treze notas entre o c. 15.2.2 e o c. 16, não formam nenhuma série completa. Elas contêm, porém, três tricordes, pertencendo originalmente a uma das três séries:

C#  [Eb Gb Ab]  [A E Eb]  [D Db F]  E A G#

elementos 5 a 7 de C el. 8,7,9 de A el. 2 a 4 de B

Exemplo 64: c. 15.2.2 a 16

A Sonatina de Mignone termina com uma Giga, dança que, no século XVII e XVIII encerrava a suite. As características básicas da giga barroca - obviamente com exceção do material sonoro - são mantidas por Mignone: andamento rápido, compasso de 6/8 com anacruse, grandes saltos e articulações.

Enquanto nos movimentos anteriores a maneira da elaboração das séries não fazia efeito sobre a estrutura formal, o terceiro movimento apresenta congruência entre a forma musical e o modo de operar com as séries. Nele podemos observar três seções:

A seção A (c. 1 c.a. - c. 22.1) tem como característica formal mais importante a estruturação em quadratura das frases: nos c. 1 c.a. ao 8.1.2; c. 8.1.3 a 12.1.2; c. 12.1.3 a 16.1.2; c. 16.1.3 a 22.1. São usadas três séries diferentes: D, E e F. Elas aparecem na forma original e retrógrada.

OD: E C# D B C F# D# G# A# G F A (c. 1 -2.1.2)

OE: F E Db C A D D# B F# A# G# G (c.8.1.3 -10)

OF: G Bb B D C F Ab F# D# A C# E (c. 16.1.3 -18.1.2)

O início e o final de cada série coincidem com o início e o término da frase musical.

Do c. 1 c. a. a 8.1.2 temos operações com a série D: OD - RD - OD - RD,5-12 - OD,8-11. Segue, na segunda frase (c. 8.1.3 a 12.1.2) a série E e a repetição do seu heptacorde inicial: OE - OE,1-7. Em seguida, depois da suspensão na fermata, no c. 12, é reexposta a série D, continuando com elementos dela e do seu retrógrado: OD - RD,5-12 - OD,8-11 (c. 12.1.3 a 16.1.2). A seção se encerra com a série F nas formas original e retrógrada, nos c. 16.1.3 a 22.1: OF - RF - OF. Pode-se perceber que a estruturação das séries apóia a forma musical, pois a série só muda com o início de uma nova frase musical.

Na seção B, que se estende entre os c. 22.2 e 44.1, as frases são menos claramente estruturadas. Encontramos novos elementos como ligaduras longas para um ou mais compassos, e notas repetidas. No que se refere às séries, são usadas oito séries diferentes, só uma vez cada uma, não havendo mais congruência entre a forma e o material sonoro.

A seção C (c. 44.2 a 52) se distingue das outras por um novo ritmo e pelo aparecimento de semicolcheias. As frases são menores; as pausas permitem ao executante mais respirações do que na seção anterior. Uma nova série (OG), introduzida no final da seção B, é usada três vezes na forma original.

OG: G# C Eb E B C# F# G F A Bb D

Exemplo 65: c. 42.1.3 a 44.2.1

Obs.: Quando OG aparece pela primeira vez na seção C (c. 44.2.2 a 47.1.1), ela tem como 12º elemento a nota E, uma repetição, portanto, do 4º elemento. Nas outras vezes, com exeção da última (c. 50-52), a série aparece completa. O executante terá que pensar se ele considera esse E um erro (em vez de D) ou não.

A Coda, que segue nos c. 53 a 64, trabalha com fragmentos e subséries de OG. Ela apresenta três vezes a mesma estrutura rítmica e melódica, o que diminui a agitação dos compassos anteriores e finaliza o movimento.

À primeira vista, a Sonatina parece ter bastante de convencional, já que as estruturas são todas tradicionais: períodos binários, quadratura, características formais típicas de uma Giga etc. O tratamento menos tradicional, no tocante à natureza das linhas melódicas, ocorre no Andante, movimento curto, mas cheio de ornamentos, que se espera mais em obras para flauta ou violino do que para fagote. Sentimos uma discrepância entre a estruturação quase convencional e o material dodecafônico nela empregado. Tudo é, porém, perfeitamente executável e escrito de uma maneira agradável para as condições fagotísticas. As articulações são bem colocadas, a extensão fica entre si bemol 0 e si bemol 3 e, apesar de densa, a escrita oferece sempre boas possibilidades de respiração. Na partitura obtida com Noël Devos consta a mudança de andamento de mínima=112 para ± 92 no primeiro movimento, o que, para uma execução segura das semicolcheias, realmente é suficiente. Devido à elevada resistência necessária à sua execução, o grau de dificuldade desta obra foi avaliado em nível avançado I.

 

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