|
Ainda ontem estávamos fazendo o concerto
inaugural dessa orquestra. Hoje faço meu concerto de despedida.
Nem parece que entre estes dois concertos se passaram mais que
35 anos de uma intensa realização profissional, mais que a metade
do tanto que já vivi até hoje...
|
Parafraseando certa literatura, poderia até
dizer que vivi a “ASCENSÃO E QUEDA DO TEATRO NACIONAL”; pois quando
começamos o Teatro Nacional ainda não existia por completo, hoje
já quase não existe mais...
|
Nunca fui um virtuose do meu instrumento, antes
talvez um apaixonado pelo fagote. Comecei meus estudos já com
certa idade, numa idade em que muitos de meus colegas da música
já estavam há tempos no exercício da profissão...
|
Nas muitas vezes em que participei dos
aproximadamente 1400 concertos que a orquestra realizou nesse
tempo, em algumas passagens acertei, em outras errei, em outras
ainda até deixei de tocar.
|
Vamos combinar o seguinte:
|
-
as que deixei de tocar, já que aparentemente
não fizeram falta ou quase ninguém percebeu, ignoremos!...
|
-
nas que errei, passemos uma borracha;
|
-
e que fiquem na lembrança aquelas que
acertei... e assim todos ficamos bem!
|
Quem me conhece, sabe que não sou de falar muito,
também agora não vai ser diferente; mas como agradecer não doi
nem a quem agradece nem a quem é agradecido, tomo a liberdade de
fazer alguns agradecimentos:
|
1. Em primeiro lugar um agradecimento a todos Vocês
na qualidade de plateia, simplesmente pelo fato de estarem aqui,
de sempre prestigiarem nossas apresentações... O músico vive de
seu público; são Vocês que dão sentido ao nosso fazer musical; a
música que tocamos é para ser compartilhada...
|
2. Depois, quero agradecer mais uma vez a Vocês, na
qualidade de fieis e pontuais pagadores de meu salário; sim,
pois é o seu imposto que nos sustenta... e espero que assim
continue sendo daqui para a frente, que Vocês possam garantir
minha aposentadoria que agora começa!
|
3. O próximo agradecimento vai para cada um desses
meus colegas músicos que fazem de nós uma orquestra:
|
-
a começar pelos colegas de naipe, os mais
próximos; dois dos quais foram inclusive alunos meus;
|
-
aos colegas do grupo das madeiras, com quem o
fagote tem uma afinidade maior no exercício diário da
música;
|
-
um agradecimento aos valorosos
músicos da retaguarda, mesmo que por vezes tenham soprado forte no
meu ouvido (e por isso mesmo sejam também lembrados pelo
zumbido que me causaram);
|
-
a toda essas cordas da linha de frente, alguns dos quais
nem sei o nome completo, mas que são a alma da orquestra; se
eu tivesse que tocar no fagote a quantidade de notas que
eles tocam, por certo estaria ainda longe da aposentadoria!
|
-
aos maestros da casa e aos maestros
convidados;
|
-
àqueles a quem eventualmente ensinei alguma
coisa e a todos aqueles de quem muito aprendi;
|
-
àqueles que por aqui já passaram, àqueles que
estão igualmente aposentados ou até mesmo desta vida já se
foram;
|
sem o talento e a atuação de cada um de Vocês eu
não poderia ter sido a orquestra que somos!
|
Incluo aqui a laboriosa equipe do apoio técnico,
que ultimamente, além de providenciarem cadeiras, estantes,
partituras, luminárias entre outras tarefas quase não vencem
transportar estantes e instrumentos de um local a outro, tanto
se transformou esta orquestra em uma orquestra cigana...
|
4. Por último, mas de maneira alguma em último
lugar, queria falar meu agradecimento a Deus, que também atende
pelo nome de Divina Providencia. Quando se fala em Deus o tema
fica meio nebuloso, distante e abstrato; alguns até nem
acreditam nele. Então para que este agradecimento tome contornos
reais, tomo a liberdade de elencar alguns fatos providenciais
que ele dispôs em meu caminho; uns chamariam isso de destino,
outros de coincidência, outros ainda de sorte; prefiro chamar de
PROVIDENCIA mesmo:
|
-
Numa cidade com quase nenhuma tradição
musical Ele me fez ouvir uma excelente banda sinfônica do
corpo de bombeiros; assim fui despertado para a música;
|
-
Numa cidade à época quase sem tradição
orquestral tive a oportunidade de assistir um concerto com a
Filarmônica de Nova York; assim descobri o mundo da
orquestra;
|
-
Numa escola de música onde basicamente se
ensinava o piano, Ele me fez descobrir um fagote (tinha até
uma palheta...): assim descobri meu instrumento;
|
-
Num curso de férias, a Providencia me fez
conhecer o fagotista que me convidou a estudar na Alemanha;
e uma vez na Alemanha fui um dos dois únicos alunos deste
mesmo professor; assim aprendi a tocar fagote...
|
-
Durante meus estudos fui premiado com
vizinhos que tiveram a compreensão e a paciência de aturar
um estudante de música; vizinhos que sabiam exatamente onde
eu ia errar e vibravam a cada vez que eu vencia passagens
difíceis;
|
-
Nesta mesma Alemanha, Ele colocou em meu
caminho minha fiel companheira e mãe de meus filhos;
|
-
Ainda na Alemanha, no meu trabalho, onde eu
era vendedor de LPS de música clássica (ainda tempo dos "bolachões")
fui encontrado por dois músicos que me convidaram a vir a
Brasília; um deles era o violoncelista Antonio Guerra
Vicente, o pai de nosso colega Guto; o outro era o falecido
violista Scheuermann;
|
-
Em Brasília ele me proveu de alunos
talentosos que me fizeram fácil a tarefa de ser professor;
alguns desses alunos são meus colegas de orquestra; outros
atuam pelo Brasil e pelo mundo afora;
|
-
E como se isso não bastasse me deu mãos
relativamente hábeis para confeccionar e reformar fagotes; é
o que pretendo continuar fazendo daqui para frente enquanto
essas mesmas mãos
continuarem hábeis...
|
-
E aqui me fez co-fundador dessa orquestra, da
qual hoje me despeço.
|
Nenhuma despedida para um músico seria mais
significativa do que com a própria música. Cláudio Santoro, numa
das primeiras temporadas dessa orquestra me convidou a ser
solista do Concerto para fagote de Weber; ele deve ter gostado
da execução, pois depois disso incluiu o último movimento deste
mesmo concerto para compor um programa básico que foi inúmeras
vezes levado às cidades satélites, às escolas, e em programas
para a juventude... Assim, proponho tocar agora como despedida
esse mesmo movimento... talvez não com o mesmo vigor de décadas
atrás, agora já com o peso da idade e com outros pesos também;
de qualquer maneira com a mesma alegria e o mesmo empenho...
|
Assim o ciclo se fecha.
|
Um aperto no coração de cada um de Vocês!
Hary Schweizer
|