Fagote KECKEL 5082 |
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pequeno relato sobre sua história |
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São Paulo, 10 de fevereiro de 2016 Salve caro Hary,
À sua questão de como o
instrumento chegou às minhas mãos.
Vamos lá.
Talvez até você tenha conhecido o
anterior dono do instrumento, pois o mesmo morou meses ou pouco
mais de um ano em Brasília e lecionou fagote na Universidade de
Brasília, isso acredito que tenha ocorrido por volta do final da
década de 70. Refiro-me ao fagotista inglês Frederic Louis
Raymond. O Fred como o chamávamos foi contratado em Londres onde
passou por testes para admissão como primeiro fagotista para a
então Orquestra Filarmônica de São Paulo, que tinha como Diretor
Artístico e Regente Titular o maestro polonês naturalizado
argentino, Símon Blech. O próprio maestro Blech que selecionou
os candidatos, flautista: (inglês), oboísta: (tcheco),
clarinetista: (tcheco), trompistas: (tchecos). O Oboista Vaclav
na época estava casado com a violinista Ludmila, também
contratada e que me parece ainda morar em Brasília. Havia também
músicos norte americanos (trompistas e trompetistas). O maestro
Blech havia dirigido por muitos anos a Orquestra Sinfônica
Municipal de São Paulo e havia deixado saudades pelo excelente
trabalho desenvolvido naqueles anos após sua chegada ao Brasil.
Então o Elias Kaufman, Diretor Financeiro da Sociedade
Filarmônica de São Paulo, conseguiu através de seus contatos,
que grandes empresas bancassem a nova Orquestra Filarmônica de
São Paulo e o Símon Blech aceitou a incumbência de montar e
estruturar a nova formação orquestral.
Conheci o Fred num concerto ao ar
livre no campus da Universidade de São Paulo, nos primeiros
concertos daquela nova formação e ao final do programa fui
conversar com ele, que ainda nem falava o Português. Tornamo-nos
bons amigos e cheguei a ser seu aluno. Poucos anos depois o
Kaufman faleceu e a Sociedade Filarmônica não conseguiu manter o
vínculo dos patrocinadores iniciais atraídos pelo talento do
Kaufman. Assim, a Filarmônica de São Paulo teve que suspender
suas atividades regulares. Desmantelada a orquestra o Fred
viajou para Belo Horizonte e Brasília; chegou a trabalhar em
Belo Horizonte em alguns poucos concertos e em Brasília como
professor de fagote. Lembro-me dele citar nessa época o nome do
Helman Jung.
De volta a São Paulo, pois em
Brasília segundo o Fred nada acontecia a não ser um galo garnizé
que o infernizava a cada dia, antes mesmo do raiar do dia, isso
no Campus da UNB, o Fred teve problemas para arranjar uma nova
atividade econômica, pois não havia vagas na Orquestra Sinfônica
Municipal e a ele, como bom inglês, faltava jogo
de cintura. Como ele tinha atração por mulatas e pelo calor
do clima brasileiro, provavelmente por essas razões ele decidira
ficar por aqui mesmo, sem que as condições que inicialmente
imaginara estivessem mantidas. Soube que antes ele havia morado
em Liverpool, onde estudara Fisiologia e Bioquímica além de
fagote, evidentemente. Também havia passado um período na Suíça
francesa, tentando se fixar como fagotista profissional naquele
país de origem de sua família materna.
Lembro-me o Fred ter citado que, durante o período em que morava na Suíça, ter viajado para a Tchecoslováquia, na época um país comunista da órbita da ex-União Soviética, para comprar o fagote Heckel 5082, que acaba de passar por suas competentes e habilidosas mãos de artesão, preclaro Herr Schweizer. Não tenho nenhum detalhe de como ele teria sabido da existência desse fagote e que o mesmo estivesse à venda. Como entrou e saiu do país de um regime rígido, isso creio que jamais saberemos. E essa é toda a genealogia pregressa que me foi dado a conhecer sobre o histórico dessa peça saída de Biebrich no ano 1912.
Casei-me em 83 e na cerimônia
religiosa havia além do órgão da igreja, um dueto com flauta e
fagote, sendo que o Fred foi o fagotista e a flautista uma
conhecida dele. Lembro-me que na recepção, apenas o duo se
apresentou. Depois do meu casamento, construi minha casa e
passei um período sem me encontrar com o Fred. No final dos anos
80, recebi um telefonema dele e voltei a ter algumas aulas com
ele. Nesse período ele dava aulas de Inglês por questões de
sobrevivência. Mas percebi que o Fred estava debilitado e
desanimado. Um dia ao invés de recebê-lo em casa preferi pedir
seu endereço e fui ver como ele vivia, pois estava num bairro
mais afastado. Ao ver suas condições fiquei assustado e senti
que eu teria que fazer alguma coisa com urgência para tirá-lo
daquela situação. Naquela semana falei com algumas pessoas que
poderiam ajudar. Até com o Cardeal de São Paulo, Paulo Evaristo
Arns, falei e ele quis trocar algumas palavras com o próprio
Fred. Assim, ao final de mais alguns dias ele fez exames médicos
como pré-requisito para ser admitido numa de Casa de Repouso
para idosos, mantida por uma instituição religiosa, embora Fred
contasse na época exatos 50 anos, sendo portanto uma exceção no
regulamento do local. No período em que ele teve que aguardar o
resultado dos exames para poder ser admitido no seu novo
endereço, fiz uma compra de supermercado para suprir sua
alimentação e assim passaram-se aqueles dias. Àquela época não
havia celular, portanto, lembro-me agora, ter deixado com ele
fichas telefônicas para que ele me informasse qualquer
necessidade que houvesse. Tendo recebido sinal verde a partir
dos resultados dos exames realizados pelo Fred, fui buscá-lo e
aos seus poucos pertences. Aí percebi que cerca de 90% dos
víveres que eu havia comprado, quantidade suficiente digamos
para duas semanas, ele havia consumido em 4 dias. Tal sua
carência nutricional e psíquica. Nesse quadro levei-o ao seu
novo endereço. Um dormitório amplo exclusivo para ele, com
excelente insolação e ventilação natural. Dispunha também de um
banheiro exclusivo com chuveiro com água quente. Refeições nos
horários padrão. Ele ficou exultante como uma criança que
ganhara o sonhado presente de aniversário.
Para não interferir na rotina da
casa, ao me despedir dele combinei que voltaria no sábado
próximo com a minha esposa pois sábado era o dia de visitas. Na
6a-feira, recebi telefonema da administração da casa de Repouso
informando que ele havia sido levado ao Hospital com problemas
gástricos e falecera naquele dia.
Tive que tratar do funeral e do
sepultamento pois o Fred deixara mãe, irmã e uma tia de quem era
muito próximo. Depois do sepultamento coube-me escrever à sua
mãe para transmitir-lhe a dolorosa notícia do seu falecimento.
Junto com a carta, mandei via Sedex, o seu relógio de pulso,
suíço e mecânico, e indagando como deveria proceder para enviar
os dois fagotes que ele deixara, como únicos bens de valor além
do relógio que seguia em anexo. Dias depois, naquela época era
assim, hoje para as novas gerações é uma coisa impensável,
recebi carta da irmã do Fred dizendo que eles sabiam da amizade
que houve desde a chegada dele ao Brasil, - até que ele tocara
no meu casamento elas tinham conhecimento. E acrescentava, como
na família não havia mais nenhum músico e pela verdadeira e
desinteressada amizade que sempre existiu no nosso convívio, a
família decidia que a melhor solução seria que eu ficasse com os
dois fagotes deixados pelo Frederic Louis Raymond. Minha mulher
se emocionou tanto quanto eu com o episódio!
Assim, prezado Hary, permita-me
assim tratá-lo, a história de como, de forma absolutamente
impensável, eu ganhei o Heckel que você tão cuidadosamente
reformou. E também o Püchner, 7268, com o qual o Fred tocava na
orquestra, chegando a ser solista dos Concertos de Weber.
Curiosamente, sobre o histórico do Püchner, não me lembro de
qualquer comentário do Fred sobre o instrumento que tivesse
ficado registrado em minha memória. Sei apenas, por experiência,
que é um instrumento muito mais pesado, para sustê-lo à
execução.
E para terminar, uma informação
recente que teve como origem o próprio Ivan. Curiosamente, esse
querido irmão das galerias do Teatro Municipal de São Paulo do
final dos anos 60 e início dos anos 70 teve seu primeiro contato
físico com um fagote, e pôde experimentá-lo no ano de 1970,
quando convidei-o a ir até minha casa para ver e experimentar um
velho Lignatone que eu havia tomado emprestado por quatro meses
para algumas aulas particulares. Aí não teve jeito, foi também
inoculado pelo “bicho”!
Um grande abraço e meu
reconhecimento pelo seu trabalho cheio de talento e amor pelo
fagote!
Que belo site você criou!
Parabéns!
Ruy Alvarenga
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