resenhas do CD "Com licença!..."

 

Dois novos CDs de música brasileira

uma resenha e uma comparação

ERNESTO DONAS

Publicação original em inglês na revista "The Double Reed" (USA), Vol 29 Nº 4 (2006), pág.125/126.

tradução: Alexandre Nascimento

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Morelli, Frank.  2004.  Bassoon Brasileiro (Fagote Brasileiro).
MSR Classics, MS1110
Composições de Francisco Mignone e Heitor Villa-Lobos.
Com Benjamin Verdery (violão) e a Orquestra de Câmara Orpheus.
Disponível em www.morellibassoon.com

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Schweizer, Hary.  2005.  Com licença!… 
Edição do autor, HS01CL.
Composições de Júlio Medaglia, Heitor Villa-Lobos, Chiquinha Gonzaga, Achim von Lorne, Emilio Terraza, Tom Jobim, Benny Wolkoff, Ernesto Nazareth, Andreas Herkenrath e Benedetto Marcello.
Com Gustavo Koberstein e Flávio Lopes Figueiredo Jr. (fagotes), Elza Kazuko Gushikem (piano) e Paulo Marques (bateria).
Disponível em www.haryschweizer.com.br

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ler a íntegra do texto na versão original

Música é um dos mais fortes veículos para a construção e experiência da cultura nacional  Quando é o fagote (que todo mundo lembra, um instrumento originariamente europeu) que encontra a música brasileira, músicos brasileiros (intérpretes, compositores e arranjadores), madeiras e construtores brasileiros, a interação produz um mundo próprio e nossas expectativas por algo original aumentam. Mas como e por que a música e o fagote cruzaram caminhos no Brasil? Esta resenha é uma tentativa de investigar estes encontros ou talvez pedir licença para brincar com algumas possíveis respostas para estas questões. O que é o fagote brasileiro nestes dois trabalhos distintos? Minha intenção aqui não é comparar as gravações. Antes, eu irei rapidamente resenhar cada CD em separado e a seguir  farei uma justaposição do que Morelli e Schweizer nos oferecem musicalmente e o possível significado para os fagotistas e entusiastas da música brasileira em geral.
Frank Morelli intitulou o seu trabalho de Bassoon Brasileiro (Fagote Brasileiro), o que resulta coerente com o que os ouvintes vão vivenciar do começo ao fim deste CD de 20 faixas: duas palavras em duas línguas diferentes, um encontro de mais de 70 minutos entre a música para fagote escrita por dois dos maiores compositores brasileiros do século XX  e um dos maiores fagotistas dos Estados Unidos. Morelli apresenta sua própria visão de brasilidade. Morelli inova ao contribuir com novas idéias interpretativas a peças eruditas brasileiras a princípio canônicas para o fagote (apenas brasileiro?), com fraseados apaixonados, sonoridade cativante, técnica marcante e interpretação madura. O CD começa com o Concertino para Fagote e Orquestra de Câmara de Francisco Mignone, uma peça abundante em melodias de músicas tradicionais e passagens ritmicamente complexas que demandam virtuosismo e o uso de toda a tessitura do instrumento.
Duas peças de Heitor Villa-Lobos seguem o concertino. A primeira é uma adaptação da Ária das Bachianas Brasileiras No.5 (originalmente para soprano e conjunto de violoncelos, e depois adaptada para soprano e violão). As nuances tímbricas sutís de Morelli contribuem para alcançar a intimidade melódica desta ária extremamente lírica. Esta é uma das duas peças gravadas tanto por Morelli quanto por Schweizer (falaremos mais sobre isto à frente). A segunda, Ciranda das sete notas, uma mistura de virtuosismo, melodias e harmonias que soam tradicionais, e um ar Stravinskyano, servem como uma ponte entre o fagote acompanhado e o fagote solo. Cada “quadro” da ciranda é claramente formado e concebido, com um timbre mágico no registro superior, particularmente em alguns trechos da ultima seção da peça. A orquestra acompanha essas passagens com bom equilíbrio e interpretação apurada. O último dó da ciranda, em pianíssimo, serve como prelúdio para as dezesseis valsas para fagote solo de Mignone, as quais foram escritas para o conhecido fagotista franco-brasileiro Noël Devos e quem fez a única gravação do ciclo inteiro das valsas até a gravação de Morelli. O desafio de Morelli (e para qualquer um que não toque em um fagote francês) foi combinar com facilidade o notório lirismo e o virtuosismo das valsas com uma agilidade e versatilidade especiais no registro agudo. Contudo Morelli poderia aqui ter minimizado o uso de reverberação para preservar o som natural (e real) do instrumento.
O próprio Morelli escreveu o texto do encarte, o qual, apesar de alguns erros, é abundante em informações históricas sobre o impacto do modernismo brasileiro na música  e sobre as peças gravadas no CD. Estas informações são precedidas pelo título “A ascensão da identidade musical do Brasil”, que poderia ser lida, na verdade, como “A busca da identidade musical brasileira pela vanguarda musical no início do século XX”. Acaso um país tem uma identidade inerente ou tem, em vez, o sincretismo de um conjunto de práticas baseado no encontro de culturas (ou seja, a cultura musical brasileira construindo-se e encontrando-se com instrumentos e composições européias)? O fagote definitivamente contribuiu para esta busca, e os dois CDs são uma prova viva disto
Hary Schweizer, brasileiro  de descendência alemã, criou um repertório baseado na música escrita por brasileiros (incluindo os tangos de Emílio Terraza, argentino que vive no Brasil desde 1959) e alemães (um deles, o antigo professor de Schweizer em Munique). Este é um exemplo da hibridação inerente do brasilianismo e da total integração da gravação e do texto do encarte. Contrariamente ao caso de Morelli, este é o primeiro álbum solo de  Schweizer. Pelo fato de ter sido aluno de Schweizer, eu posso dizer que Com licença!… é um conto musical de sua vida como músico, professor, fabricante de fagotes e ser humano (brasileiro); ou, parafraseando o texto do encarte de Schweizer, é como uma suite representando momentos de sua vida como fagotista e como construtor de fagotes. Uma vez que este CD de 21 faixas tem um repertório um tanto contrastante, eu não entrarei no detalhe de cada peça (mais que isso, eu pretendo que esta análise motive o leitor para ouvir os dois CDs aqui resenhados).
Todas as peças no CD contam com o som nítido e bonito dos fagotes Schweizer, incluindo o modelo “júnior” para crianças, usado nas Melodias da Cecília de Mahle, peças que todos os estudantes de Schweizer tocam na primeira apresentação. O álbum mostra a versatilidade de Schweizer como intérprete em músicas tão variadas como composições populares (Medaglia, Jobim, Nazareth, Wolkoff, Gonzaga), novo tango (Terraza), músicas tradicionais estilizadas (Mignone, Villa-Lobos), música de Natal (von Lorne), uma sonata barroca (Marcello) e jazz (Herkenrath). Algumas das peças foram compostas para serem primeiro tocadas em um fagote Schweizer! O duplo significado do título do CD ampara o tipo de inovação apresentada por Schweizer: pedindo licença para entrar a um determinado universo musical ou uma certa liberdade de interpretação. O repertório variado de Schweizer inclui algumas primeiras gravações, como a anteriormente desconhecida Mágoas de fagote de Jobim, adaptações (novamente, a Bachianas Brasileiras No.5 de Villa-Lobos) e versões livres de peças específicas (como agregar a bateria na sonata em mi menor de Marcello!) com uma interpretação intimista e coerente, técnica transparente e som aconchegante (incluindo a quase total ausência de barulho de chaves em seus fagotes). Ele também divide a gravação com alguns de seus antigos estudantes (Figueiredo Jr. e Koberstein) e seus fagotes não-Schweizer; e com outros músicos que estiveram próximos em momentos importantes de sua carreira. O texto do encarte é principalmente uma biografia e portanto uma oportunidade para o leitor e ouvinte conhecer mais sobre a singularidade da vida de Schweizer e o contexto deste projeto (incluindo quadros do atelier de Schweizer e garrafas de sua inesquecível cachaça caseira)
Os dois CDs contém dois trabalhos em comum: A Ária da Bachianas Brasileiras No.5 de Villa-Lobos e a valsa Aquela modinha que o Villa não escreveu de Mignone. As duas adaptações das peças de Villa-Lobos diferem em instrumentação (acompanhamento de violão X acompanhamento de piano) e na seção central. Enquanto na gravação de Morelli o violão lembra mais de perto o conjunto de violoncelos na versão original do que o piano no CD de Schweizer (embora lindamente tocado, ele soa muito distante para mim), a idéia de Schweizer de um “interlúdio instrumental” do instrumento acompanhante evita a repetição de notas que originariamente contam com o texto e que se tornam excessivas quando tocadas no fagote. A valsa de Mignone é um exemplo de duas interpretações contrastantes de uma modinha muito transparente: Enquanto Morelli opta por mais rubato, Schweizer decide mudar as últimas quatro notas da valsa uma oitava acima, talvez buscando um final mais melancólico. A justaposição de apenas estas duas peças é simbólica na medida que, a despeito de sua fabulosa e prolífica produção musical, “o que Villa-Lobos não escreveu” Mignone supostamente o fez . E, da mesma forma, eu acredito que o que Morelli ou Schweizer não gravaram outros continuarão fazendo-o.
Morelli e Schweizer, então, apresentam sons diferentes, conceitos díspares de gravação de som e projetos distintos, ambos brasileiros à sua maneira e à sua própria dimensão. Brasilianismo, nestes casos, engloba um grande leque de possibilidades tímbricas, e de musicalidade, virtuosismo, interpretação musical, seleção do repertório e tipo de produção. Morelli segue um legado de músicos bem conhecidos que têm incorporado o repertório musical brasileiro[1] e, na minha forma de sentir o CD, oferecendo uma longa meditação sobre e nos estados de ânimo do bassoon (fagote) brasileiro. Schweizer opta por um projeto eclético e cosmopolita, algo pessoal a apaixonado, baseado no Brasil e usando um fagote brasileiro (construído no Brasil). Isto tudo significa que há mais de um fagote brasileiro possível a ser concebido e ouvido. E, novamente, eu espero que mais fagotistas continuem se engajando em agregar seus próprios pontos de vista (e pontos de escuta!) às maravilhosas iniciativas de Morelli e Schweizer, as quais dão o som ao encontro de diferentes Brazis e fagotes.

 

Ernesto Donas

Fagotista e Doutorando em Etnomusicologia
The CUNY Graduate Center (Nova York)
edonasg@yahoo.com
 

[1] Essa tendência, acredito, começou com a música argentina (talvez graças a Astor Piazzolla) e seguiu depois para o Brasil.  Exemplos disso são Mi Buenos Aires Querido de Daniel Baremboim (Tangos Among Friends para o público de língua inglesa [Teldec, 1996]), Soul of the Tango: The Music of Astor Piazzolla do violoncelista Yo-Yo Ma (Sony, 1997), Brazilian Rhapsody de Baremboim (Teldec, 2000),  Obrigado Brazil (Sony, 2003) y Obrigado Brazil Live in Concert (Sony, 2004) de Yo-Yo Ma.

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