FAGOTE, uma breve história

Hary Schweizer

 

Uma pessoa que vá assistir uma orquestra sinfônica se depara com um grande número de instrumentos diferentes entre si. Mesmo o freqüentador mais assíduo tem, por vezes, dificuldades em identificar alguns deles, devido à diversidade de tamanhos, formas e nuances... Um desses instrumentos que chama a atenção (fica muitas vezes escondido no meio da orquestra) é o FAGOTE: um instrumento de forma um tanto exótica, na maioria das vezes vermelho, se parecendo com um enorme tubo revestido de chaves prateadas... 
Refazer a “história genealógica” do fagote é voltar à época do Renascimento e se perder um pouco em documentos imprecisos e desfeitos pela história... À essa época não havia uma música instrumental propriamente dita, mas tão somente instrumentos que, com poucas exceções (fanfarras militares, música de dança e algum folclore), repetiam aquilo que já era cantado pela voz humana. O canto a quatro vozes era então a regra e para que os instrumentos pudessem atender à tessitura de cada uma das vozes humanas (soprano, contralto, tenor, baixo) eles eram construídos em diferentes tamanhos, constituindo-se assim em “famílias de instrumentos”: instrumentos menores tinham som mais agudo, os maiores, mais grave. Existiam, entre outras, famílias de violas, de flautas, de cornamusas...  Até aqui a história do fagote se confunde em parte com a de outros instrumentos. 
É bem provável que o fagote tenha tido sua origem em um instrumento grave de uma dessas famílias de instrumentos de palhetas duplas: as bombardas. A bombarda-baixo era de um tamanho quase descomunal, necessitando por vezes de uma pessoa que a segurasse para que outra a pudesse tocar. Como a criatividade humana não conhece fronteiras, o problema logo se resolveu... Assim, a solução encontrada foi a de dobrar ao meio um instrumento que tinha mais de dois metros de comprimento! Este procedimento reduziu por certo suas dimensões, mas teve também como conseqüência uma alteração da sonoridade; e a bombarda, inicialmente de som áspero e até agressivo, passou a ter um som mais suave, mais “dolce”, a tal ponto que tomou daí o seu novo nome: DULCIANA. 

 

Com o acréscimo de algumas chaves necessárias para que os dedos pudessem operar os orifícios mais distantes e algumas alterações de perfuração e dimensões, este passou a ser o fagote barroco.  Existe uma certa crença de que o nome fagote venha do italiano “il fagotto”, o que quer significar: um amontoado de coisas, como por exemplo, um feixe de lenha, numa alusão ao formato que o instrumento assumiu com sua dobra ao meio. Em francês o fagote atende pelo nome de basson (uma alusão ao seu “som de baixo”?). A nomenclatura inglesa é bassoon. 
A passagem para o século XIX, uma época acentuadamente progressista, baseando suas pesquisas na acústica, ressaltou a preocupação pela afinação e sonoridade do instrumento, fazendo o fagote passar por uma série de inovações e melhoramentos. É a partir de então que ficam mais diferenciados os sistemas hoje conhecidos como sistemas alemão e francês.  O sistema francês se firmou através de construtores como Savary e Triébert, que seguiam uma linha de construção mais conservadora. Atualmente o fagote sistema francês é tido como um instrumento que executa com mais facilidade passagens no agudo e tem como característica um som mais ou menos anasalado. Buffet-Crampon é o nome que, em nossos dias, se tornou praticamente sinônimo do fagote construído no sistema francês. 
Na Alemanha, Carl Almenräder (1786-1843), com sua criatividade e muitas inovações, é de fundamental importância no desenvolvimento do fagote sistema alemão; aliando-se a Johann Adam Heckel (1812-1877), um jovem e talentoso construtor de instrumentos, desenvolveu o fagote, dotando-o de um novo mecanismo a alterando-lhe também as dimensões de perfuração. Esse novo instrumento é a base do fagote moderno alemão, que atualmente também é conhecido como “sistema Heckel”. Para o ouvinte a diferença de sistemas se faz sentir sobretudo através da sonoridade e do aspecto visual do instrumento; para o fagotista, além destas, existe a grande diferença do mecanismo das chaves, que faz com que o dedilhado usado em um instrumento não seja aplicável a outro. 
Independentemente se o fagote é baseado no sistema francês ou alemão, ele se compõe de uma parte construída de metal (bocal) e de quatro partes construídas de madeira (asa, culatra, baixo e campana), que se encaixam uma na outra e que, quando montadas, perfazem um tubo cônico de 235cm, tendo um diâmetro inicial de 4mm. e finalizando em 4 cm.  No tocante às partes de madeira, quando o sistema é alemão, o fagote é quase sempre construído em ácer (em alemão: Ahorn; em inglês: maple wood); quando seu sistema é francês, a madeira usada é tradicionalmente o jacarandá. Como o ácer é uma madeira muito clara, quase branca, o fagote é normalmente tingido com alguma coloração que lembre a nobreza da cor do mogno. O jacarandá, por ser já de natureza mais escuro, não recebe corante e tende automaticamente ao marrom. Mas não é a cor que importa; ela é um acessório meramente estético...
O fagote é o baixo do grupo das madeiras (flauta, oboé, clarineta, fagote) e realizador de uma extensão sonora bastante ampla: são mais de três oitavas, abrangendo do sib –1 até o mi 4 (tomando-se como base o dó central = dó 3). Atualmente instrumentos mais apurados, instrumentistas mais ousados e uma literatura mais exigente estão fazendo extrapolar essa tessitura, forçando o fagotista a tocar, em certos casos, até o sol 4. O som do fagote é produzido, tal como na bombarda renascentista, por uma palheta dupla aplicada a um bocal em forma de “S” e feita vibrar pela boca do instrumentista através do sopro. 
As exigências de sonoridade da orquestra moderna e o desenvolvimento ds instrumentos fazem com que cada um dos instrumentos das madeiras tenha um ou mais “parentes” próximos: flauta - flautim; oboé - corne inglês; clarineta - clarone. No caso do fagote o parente próximo é o contrafagote, que soa uma oitava abaixo do fagote. 
O fagote é de construção bastante complexa, sobretudo em função da dobra do instrumento, onde, em uma só peça, na chamada culatra, existem dois furos: um descendente e outro ascendente unidos por uma válvula em forma de “U”. Por isso, contam-se quase que literalmente nos dedos os fabricantes de fagote pelo mundo afora, estando os principais representantes na Alemanha, França, Estados Unidos e Japão. O Brasil está modesta mas orgulhosamente representado neste seleto rol de fabricantes com o autor deste pequeno histórico do fagote, que, há cerca de 10 de anos, se aventura com sucesso nesse campo, usando para isso madeiras brasileiras.

 

HARY SCHWEIZER foi, até 1995, professor de fagote na Universidade de Brasília. Atualmente é fagote-solista da Orquestra do Teatro Nacional de Brasília e fabricante de fagotes.

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