conversa de fagotista |
|
- afonso venturieri - |
|
|
|
portal - na qualidade de fagotistas todos temos nossa pequena história particular com o fagote: porque escolhemos o fagote como profissão e/ou opção de vida, como chegamos a ele, que instrumento usamos. Afonso, qual é a sua história? |
|
Afonso - Comecei a estudar música por iniciativa própria, primeiro com o piano, instrumento que toco até hoje. Tinha mais ou menos 10 anos, não lembro muito. Depois passei a aprender clarineta, pois tinha vontade de tocar em orquestra, achava que, se fosse pianista, teria que passar a vida tocando sozinho. A orquestra já me fascinava. Gostava de clarineta, mas não estava muito satisfeito, pois gostava de música barroca e logo percebi que teria pouco repertório barroco, quase nada, algumas transcrições, etc. | |
Depois de dois anos o diretor da escola de música em Belém me perguntou se eu não queria tocar fagote, pois a orquestra de jovens precisava de um fagotista. Já conhecia o fagote de gravações - gostava muito de ouvir o concerto de Brandenburgo n°1, o trio do minueto...! Aceitei. | |
Mas, o problema é que
teria que aprender sozinho, pois havia um instrumento da escola e nenhum
professor. Havia um fagotista autodidata, militar, que tocava na
orquestra. Ele ficou desconfiado quando eu disse que ia tocar fagote e
foi logo falando que não daria aulas. Percebi que ele na verdade estava
com medo de ficar sem o ganha-pão dele, ele era o único da cidade e
teria que dividir o instrumento comigo. Então, peguei um método - o único - da escola - e uma palheta francesa comprada pela escola em SP. Comecei então a descobrir o instrumento e logo estava tocando na orquestra de jovens. Era um fagote Lignatone. Não sabia na época se era bom. (Um dia, muito mais tarde experimentei esse instrumento, quase não consegui tocar, não sei como fazia naquela época...!)
|
|
portal - de Belém já saíram vários fagotistas que deixaram suas pegadas por aí... | |
Afonso - Curiosamente, pelo que sei, não fui o único. Outros paraenses trilharam o mesmo caminho no estudo do fagote, passando pelos mesmos problemas, possivelmente pelo mesmo Lignatone... Posso citar o Ronaldo Pacheco e a Maria da Graça Oliveira-Plühmacher, que também tiveram que sair de Belém para poder se aperfeiçoar. Acho que talvez o ponto comum entre nós seja a determinação e a vontade de querer melhorar e evoluir, buscar outros caminhos, ou "o" caminho. Parece que quanto mais difíceis são as coisas, mais vontade a gente tem de afrontar a situação...! | |
Por sorte, daí a um tempo, fiquei sabendo do professor Helman Jung que vinha regularmente ao Brasil dar aulas. Fui então a Salvador fazer um curso de férias com ele. Foi a primeira aula de verdade que tive, aprendi um monte de coisas, muitas básicas e aparentemente evidentes; mas principalmente pude trabalhar a base corretamente: embocadura, respiração, sonoridade, vibrato, etc. Tive as primeiras aulas de palheta! Fiquei em contato com o prof. Jung. Fiz vários cursos com ele no Brasil, ele me ajudou muito, me mandava material, canas, ferramentas, partituras, etc. | |
Pouco tempo depois fiz um concurso/teste para a orquestra sinfônica de Campinas, que foi tocar em Belém. Passei e consegui a vaga. Foi uma decisão crucial, pois estava cursando o primeiro ano da faculdade de agronomia/engenharia florestal e tive que fazer a opção. Larguei a faculdade e fui para Campinas. Tinha 17 anos, era menor de idade, meu pai teve assinar o meu contrato e me dar a autorização de viajar para Campinas. |
|
Na época em Campinas tocava 1° e 2° fagote, alternava com os outros fagotistas do naipe. Foi uma experiência que lembro até hoje com detalhes; os dois anos passados em Campinas foram muito importantes para a minha formação. Eu tocava tudo o que aparecia, coisas difíceis, sem saber que eram difíceis...! E hoje em dia, quando alguma peça daquela época aparece na estante, parece que o tempo volta, lembro-me de todos os detalhes, ensaio, concerto... | |
Depois de dois anos em Campinas, fiz um pedido de bolsas para o exterior. Passei por Viena, Berlin (Academia Karajan) e Detmold. Mais tarde fui para Salzburg. Ao todo 7 anos de estudo. | |
Em 1987 fiz o concurso para a Orchestre de la Suisse Romande, onde entrei e estou até hoje. | |
Depois de meus começos com um Lignatone, da escola, pude comprar um Schreiber, passei para um Püchner e finalmente um Heckel, que encomendei em 1989 e demorou 3 anos pra ficar pronto. Hoje posso dizer que é o meu instrumento definitivo. Cada instrumento foi especial no momento em que o tocava... | |
Em 2002 consegui o cargo de professor no Conservatório de Genebra – Haute Ecole de Musique, que é a escola de nível superior. É um cargo que ocupo paralelamente ao da orquestra. É muito trabalho, mas acho que vale a pena. | |
Aos meus alunos tento transmitir, como todo professor, aquilo que pude aprender ao longo desses anos, experiências, idéias, etc. | |
Sempre pensei em buscar uma formação completa, sem necessariamente me especializar em determinado repertório ou compositor. Acho que a música deve estar sempre como objetivo, a interpretação e a busca da estética musical devem estar em primeiro plano, independentemente se você toca fagote, violino, piano ou outro instrumento. Poder entender e interpretar os diversos estilos, cada um com a sua característica. Acho que isso é muito importante, buscar ser um bom fagotista para ser um bom músico. | |
Particularmente adoro tocar em orquestra sinfônica, sempre gostei desde o início. Querendo ou não, o repertório sinfônico é para nós vital, certamente grande parte do melhor e mais significativo que foi escrito para o fagote está no repertório sinfônico. | |
Acho que tocar numa
orquestra - boa de preferência – é muito gratificante: o tratamento
dado ao fagote numa sinfonia de Shostakovich, ou numa sinfonia de
Tchaikovsky, ou nos concertos de Mozart para piano... Poder tocar as
sinfonias de Mahler, ou a Sagração da Primavera de Stravinsky, isso sem
falar das óperas de Rossini, Verdi... poderia encher essa página e ainda
faltaria lugar. Independente de ser uma questão de gosto ou opção, o
repertório sinfônico é essencial para um fagotista. Sem falar da
sensação que sentimos. Nem precisa sempre ter um papel solista, é um
prazer e uma sorte imensa poder fazer parte e poder tocar esse
repertório. É claro que também gosto de tocar como solista com orquestra
e também em grupos de música de câmera! Sobre isso, deixo pra contar na
próxima conversa...
|
|
portal - o que é ser um fagotista brasileiro no exterior? | |
Afonso - Aqueles
que conhecem ou já tiveram alguma experiência profissional fora do
Brasil sabem como é difícil conseguir o seu espaço num meio altamente
competitivo, com muita gente tocando tudo. A Europa se fecha cada vez
mais; nos concursos os brasileiros são excluídos, europeus são
selecionados primeiro. Se você tem a sorte de ser convidado, ainda tem a
concorrência (no meu concurso, há 20 anos, foram 56 candidatos que
tocaram, para uma só vaga...). E a situação fica ainda mais complicada
se você for de um país "exótico" como o nosso, que é conhecido somente
pelo futebol (apesar de ter sido fortemente abalado pelo fiasco da
última copa...), samba, mulher pelada, desmatamento, etc, e outras
coisas negativas (embora , desculpem-me, com uma correção: futebol,
mulher e samba não são "coisas negativas"...) Daí, quando aparece alguém
do Brasil tocando fagote (!) é algo ainda mais exótico. Sem querer
generalizar, existe muita falta de informação - em outras palavras:
ignorância – sobre o nosso país. Quando sabem que venho da Amazônia, a
situação fica incompreensível para os olhos e ouvidos dos europeus.
"Como é possível? Existe música erudita no Brasil? Você aprendeu a tocar
no meio da floresta amazônica?" Eles pensam que a gente anda na rua se
esquivando das cobras e jacarés e que para matar a fome basta estender o
braço e colher uma banana... Eu acho muito importante fazer o meu
trabalho o melhor possível, mostrando que o Brasil (ainda) tem outras
coisas além de estereótipos...
|
|