Conversa de fagotista |
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- noël devos -
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Ariane - Seu nome está ligado ao fagote no Brasil. Como era a situação quando chegou aqui? |
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Devos -
Quando cheguei em 1952, tinha o Adam Firnekaes, um fagotista alemão, o
Laje, que faleceu há pouco tempo, e o Almeida, que era do Bombeiro, o
pessoal das bandas. O Laje chegou a tocar primeiro fagote na OSB, tinha
muito jeito.
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Ariane - e eles tinham estudado com quem? | |
Devos - O
Laje estudou com Alberto Lazolli, professor de oboé, na Escola. Não
tinha professor de fagote. Era a mesma coisa que antigamente: A cadeira
era uma só, para oboé e fagote. Na minha cidade (Calais) era assim: O
professor de oboé era professor de fagote também. E ainda ensinava sax,
para completar a carga horária. Hoje não tem mais isso, é tudo separado.
Mas nesse tempo não tinha tantos alunos assim. Por ser palheta dupla,
juntava-se oboé, corne inglês e fagote. Então, Lazolli em princípio
ensinava fagote, mas não tocava. Ele tocava um pouco o oboé na Rádio
Nacional, mas fazia mais era arranjo e regia na Nacional. Depois que se
aposentou, o Moacyr José de Freitas fez a prova e entrou na Escola.
Quando pediram para ensinar fagote, falou que não, alegando que fagote
era outro instrumento. Esse era o propósito para existir a cadeira do
fagote. Por fim, me contrataram. Fizeram um concurso de título; me
conheciam. Aí comecei a lecionar, ainda sem ser titular, mas contratado.
Só depois me tornei titular.
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Ariane - Mas o senhor já estava dando aulas antes? | |
Devos -
Já, já ensinava. Aulas particulares, e na OSB tinha uma Escolinha. Na
Rádio Ministério também criaram alguns cursos. O secretário de Juscelino
Kubitschek criou um curso especial para talentos: um grupo de músicos
que viajava pelos estados para avaliação; os estudantes se apresentavam
com qualquer instrumento, mas mostravam o talento. O Airton Barbosa fez
este concurso com sax, lá em Pernambuco. Foi aprovado logo, ele tinha
muito jeito. Isso aos 16 anos, não tinha nem o ginásio. O Governo
ofereceu uma bolsa muito boa a esses escolhidos, eram entre 7 e 10. O
Airton se dedicou completamente ao fagote, de tão boa que era a bolsa.
No fim do ano eles tinham que tocar uma sonata com piano. E dois anos
depois com orquestra. Os professores eram designados pelo governo e
muito bem pagos; tinham uma responsabilidade muito grande. Tinham de ser
professores particulares. Era bem interessante. E de repente veio o
nosso famoso presidente Jânio Quadros, que falou “Só quando tiver
dinheiro...”
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Ariane - Acabou com tudo? | |
Devos - É,
acabou com tudo e o Airton ficou sem nada. Mas nesta época eu estava
tocando a “My fair Lady”; tinha que ensaiar durante um mês. Falei que eu
ia colocar um substituto pois não poderia tocar sempre. “Ah, mas esse é
um novato” - ”Pois justamente, ele vai estudar” respondi. E ele ensaiou
por mim e tocou. Viram que não tinha problema. E ele ficou e viveu com
isso. E assim esse pessoal todo foi estudar comigo.
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Ariane - Então, sua cadeira de fagote na Escola foi a primeira do Brasil? | |
Devos -
Foi, porque na época o Rio de Janeiro ainda era Distrito Federal. Era a
única faculdade de música. Mesmo em São Paulo não existia curso
universitário para fagote; lá existia apenas um conservatório.
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Ariane - Como acha que teria sido sua vida de fagotista se tivesse ficado na França? | |
Devos -
Bom, talvez – (longa pausa). Talvez. No início, uma posição um
pouco melhor. No começo aqui era muito bom. A orquestra pagava bem no
tempo do seu presidente Euvaldo Lodi. Ele era presidente do SESC.
Eleazar (de Carvalho) queria fazer igual a Koussevitsky. Queria
trazer umas madeiras francesas e copiar um pouco a orquestra de Boston,
que ele regeu lá e que nesse tempo era uma das melhores do mundo. Queria
fazer também a orquestra POP nas férias. Então, Eleazar me contratou
para tocar na orquestra, para dar curso em Guaratinguetá (que acabou
não acontecendo) e para fazer música de câmara. Mas no contrato só vinha
especificado “tocar na Orquestra”, o resto era verbal. O contrato era
necessário para entrar no Brasil. Mas só isso já pagava melhor do que
hoje a OSESP. A gente ficava na melhor pensão lá em Copacabana, eu e
Odette (Ernest Dias, flautista).
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Ariane - O pagamento era diferenciado, ou todo mundo recebia igual? | |
Devos -
Lembro
que os primeiros recebiam Cr$ 8.000, os segundos Cr$ 7.000, e na fila
até Cr$ 6.000. E os brasileiros não tinham as férias pagas. A gente
recebia, mas tinha que tocar três concertos de graça. Depois, quando
Getúlio se suicidou, a política mudou completamente. Não se conseguia
mais a verba para a orquestra. O dólar subiu e os salários...
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Ariane - Mas inicialmente a sua idéia era passar uma temporada aqui... | |
Devos -
Sim, seriam dois anos. Recebi um contrato de dois anos. Depois eu ia
voltar. Logo depois da Guerra faltou gente para preencher as vagas nas
orquestras lá na França. Isso em 1945. Quando eu vim para o Brasil, já
estava um pouco mais difícil lá. Nesse intervalo já tinha aparecido
muita gente. Então eu preferi vir aqui para depois voltar lá. Porque
afinal, lá tinha mais estabilidade e ia receber mais. Aqui depois recebi
pouco.Começaram os tempos de paga/não paga, paga/não paga, paga
atrasado... Eu acho que, talvez, se eu tivesse voltado logo depois desse
contrato para França, eu teria conseguido viver com um pouco mais
tranqüilidade. Mas depois a gente entrou no Theatro Municipal, aí já
houve uma certa estabilidade. E também conta o fato que casei aqui com
Nani (a falecida esposa de Noël Devos). Eu voltei para a França
mais tarde, mais ou menos em 1955. Fiz um concurso lá na província,
fiquei 8 dias mas não agüentei mais e fui embora. Era numa cidade da
Bretagne, para ser professor, fazer música de câmara, mas não deu certo.
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Ariane - Mas porque o senhor não se acostumou mais? O que o incomodou? | |
Devos -
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Ariane - Mas a Nani tinha gostado da idéia de morar na França? | |
Devos -
Ah sim, ela gostava.
Ela falava francês. Ela estudou sozinha. Ela traduzia métodos de
violoncelo de francês para o português.
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Ariane - pelo que sei, sua relação com Nani foi algo muito bonito! | |
Devos
- Foi. Ela
gostava muito de falar francês, e Odette também gostou muito de Nani;
elas eram muito chegadas; assim nós três saíamos. Tinha gente que falava
disso. Éramos chamados “o Trio", uma fofoca...
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Ariane - Com Nani em casa a conversa era em francês ou português? | |
Devos
- Em francês.
Português mesmo só aprendi quando fui me casar na cidade de Natal, terra
da Nani. Lá o pessoal não falava francês. Quando cheguei aqui o comércio
era mais internacional, todos falavam francês, italiano. Tinha muitas
lojas de libaneses, todos falavam francês. Neste tempo, o ensino de
francês nas escolas era obrigatório. Muita gente falava comigo em
francês para aprender um pouco mais. Assim ficou difícil aprender
português. Para Odette era mais fácil, porque ela tinha estudado
línguas.
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Ariane - Quem entre seus alunos mais se destacou? | |
Devos
- O Airton
Barbosa foi uma pessoa especial, do ponto de vista artístico. Ele tinha
uma compreensão artística muito boa. Era uma pessoa muito interessante,
muito aberta, carinhosa. E muito culto. Cada ano no aniversário, ele
escrevia uns poemas. Ele tinha a maior facilidade. Escrevia até artigo
no jornal de literatura. Ele gostava de compor também. A gente teve uma
relação muito direta.
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Ariane - Que gravação mais lhe marcou? | |
Devos -
A
gravação do duo de Mignone ficou muito boa, a sonata dodecafônica. Era
mais difícil para poder fazer entender.
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Ariane - Tinha algum conjunto de câmara fixo que gravava regularmente? | |
Devos -
A gente fazia
parte do quinteto da Rádio. Outro conjunto era o Collegium Musicum, com
George Kiszely, um húngaro. A mulher dele tocava cravo. Lenyr Siqueira
era a flauta. Uma aluna minha, que gosta de descobrir as coisas, me
falou da gravação dos concertos de Vivaldi com o Collegium Musicum, na
gravadora Columbia do Rio de Janeiro, na qual o Giancarlo Pareschi está
tocando violino. Tinha uma base fixa de cinco pessoas, mas às vezes
agregava mais pessoas, dependendo do repertório. Depois tem o Sexteto do
Rio e também o Ars barroca. Era com Kleber Veiga no oboé e Watson Clys
no violoncelo.
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Ariane - E sua convivência com Villa- Lobos? | |
Devos
-
Não era bem convivência. Tinha um grupo em volta dele, com Iberê Gomes
Grosso (violoncelista). Para mim contava mais o maestro mesmo, na frente
da orquestra. Eu o conheci assim. A cada ano ele regia. Sempre as obras
dele, muitas vezes com coral.
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Ariane - E as obras de câmara? Ele as trabalhava com seus conjuntos? | |
Devos
- Não, na
verdade, as obras de câmara comecei a tocar mais depois que ele faleceu.
A Dona Mindinha, mulher dele, me chamava para dar cursos. Nani os
organizava. Dava muito trabalho a ela. Os cursos aconteciam lá no
Ministério da Educação. Era difícil formar os conjuntos, por causa das
formações inusitadas.
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Ariane - Como convive com a fama?. | |
Devos -
(surpreso)
Que fama? Minha?!? Nunca pensei nisso, não... (pensa um pouquinho).
Uma vez eu estava no cinema, quando de repente alguém do público me
cumprimentou. Ele se apresentou como um dentista que tocava violão, e
por muito tempo assistiu as minhas aulas sobre Villa-Lobos. Ele falou:
“me entusiasmei tanto”... Lembro também de um momento pitoresco: Nani
marcou uma primeira consulta com um cirurgião. Quando chegamos lá, tinha
música tocando, eram as valsas de Mignone. O médico tinha colocado o
disco por causa da nossa visita, era um dos que ele gostava de ouvir, e
quando Nani marcou a consulta, o nome Devos chamou atenção. Foi uma
surpresa para nós.
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Ariane - O senhor ainda estuda? Ou só colhe os frutos plantados? Existem planos para o futuro? | |
Devos
- Bom, agora
que tenho mais tempo, estou me dedicando a trabalhar os estudos, aqueles
famosos mesmo: Bitsch, Bozza, Milde... Estou me ouvindo para melhorar e
para gravar. Quero usar isso com os alunos para quando ficar mais
difícil tocar. Das melhores, das mais interessantes quero fazer uma
escolha e gravá-las em disco. Estou até estudando mais agora, com muito
prazer, e enquanto eu tiver força física.
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Ariane - Como é seu relacionamento com os maestros? | |
Devos - Sempre me dei bem com os maestros. Sempre os respeitei, e dei do meu melhor, mesmo quando não eram grandes regentes. Com os grandes, a gente esquece que o tempo passa. Maestro Bernstein era um deles, com muita gentileza, um homem fino. Erich Kleiber era muito respeitado também, um maestro completo, do tipo que hoje não existe mais. Falam muito bem do filho dele, mas esse não conheci. Quando Erich Kleiber chegava na orquestra, todo mundo se levantava. Ele tinha uma psicologia fantástica. No primeiro ensaio, deixava tocar, passava o repertório todo. No segundo dia, ele já pegava cada um de um jeito diferente: já tinha analisado todo mundo. Depois, no ensaio geral, ele se deslocava no Theatro Municipal, para escutar se dava para ouvir bem a orquestra. Com a sua maneira coreográfica do uso da batuta (o sistema alemão) os músicos ficavam meio hipnotizados, meio perdidos. Ele prendia a atenção e mudava o som. Não é necessariamente a técnica da batuta, mas o dom da pessoa. Igor Markevitch trabalhava muito bem as aberturas de Rossini e as sinfonias de Tchaikowsky. Ele tinha uma maneira aristocrática. E os brasileiros – bom, Eleazar era um pouco difícil, mas tinha personalidade. Em obras mais pesadas ele sustentava a orquestra. Isaac (Karabchevsky) conheço desde que era menino, de bermuda. O primeiro contato dele com a OSB foi quando tocou o concerto de Cimarosa para oboé. Depois regeu um grupo renascentista. Quando entrou na OSB, perguntava muito. Me dei bem com ele
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Ariane - Que recomendações e conselhos daria a um aluno? | |
Devos - Primeiro quero saber dele se gosta mesmo de música em geral, se tem disposição, até para o esforço físico. Se não tiver muita facilidade procuro ajudá-lo, porque mesmo assim ele pode chegar a tocar muito bem uma frase bonita. Os instrumentistas de cordas geralmente têm mais cultura geral, porque são obrigados a isso pela literatura deles. Mas o fagotista tem que tocar o pouco que tem tão bem quanto os outros. Sempre toquei as suites de Bach para violoncelo. Hoje em dia toco as sonatas de Mozart para violino e piano – e funciona! |
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Um conselho: considerar o fagote um instrumento cantor, expressivo. Não vou me esquecer de um amigo percussionista do Conservatório de Paris. A gente foi fazer uma temporada de ópera em Montpellier. Além dos ensaios, estudávamos num porão. Ele dedicava todo dia duas horas ao tambor, além dos outros instrumentos. E ele tirava uma sonoridade linda desse instrumento! Depois ele se tornou um fundador do conhecido grupo “Percussionistas de Strasbourg”. Lembro também de uma apresentação da Filarmônica de Nova Iorque, regida por Mitropolous. Numa sinfonia de Shostakovitch, a 11ª, ele colocou a caixa na frente da orquestra – e o público depois ovacionou o percussionista com seu som prateado. É essa persistência de fazer uma coisa bonita; não basta ser certinho, com som vazio. Numa apresentação de Haitink no Concertgebouw uma vez o contrafagotista se destacou numa sinfonia de Mahler. Acho que meu pai, um tubista amador, me deu o exemplo. |
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Lembro também de uma apresentação da Filarmônica de
Nova Iorque, regida por
Mitropolous.
Numa sinfonia de
Shostakovitch, a 11ª, ele colocou a caixa na frente da orquestra – e o público depois ovacionou o
percussionista com seu som prateado. É essa persistência de fazer uma
coisa bonita; não basta ser certinho, com som vazio. Numa apresentação
de Haitink no Concertgebouw uma vez o contrafagotista se destacou numa
sinfonia de Mahler. Acho que meu pai, um tubista amador, me deu o
exemplo.
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Ariane - Foi seu pai que o introduziu na música? Como o senhor começou? | |
Devos - Meu pai tocava numa banda, e quando chegava a casa, estudava por horas som filé. Para nós ele passava solfejo e ditado musical. Éramos sete filhos, mas dois morreram: Jean aos dois anos e Henri aos dezoito, quando se afogou num rio. Para nos ensinar a bater compasso, meu pai sentava com dois filhos de um lado e três do outro. Todos seguravam o cabo de uma vassoura, assim ele ia perceber quem puxava para o lado errado... Comecei com sax. Tínhamos uma bandinha em casa, cada um tocava um instrumento de banda como segundo instrumento. Esse ambiente de uma família musical é muito importante, porque ocupa o jovem. Um dos meus irmãos em casa tocava violoncelo. Durante a segunda guerra mundial ele ficou cinco anos afastado do instrumento, porque ficou num campo de prisioneiros de guerra. Mas mesmo assim, mais tarde ele se tornou contrabaixista da “Orchestre de Paris”.
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Ariane - Quem foram os seus professores? Quem mais o influenciou? | |
Devos -
Uma das pessoas mais
importantes na minha vida foi Julien Clouet, flautista, discípulo de
Tafanel, e pedagogo em Calais. Eu tinha aula com ele, porque queria me
apresentar no concurso de seleção para poder entrar no conservatório de
Paris. Por isso tive que criar minha própria escola, de dar um jeito,
pesquisar para desenvolver minha personalidade no instrumento. Às vezes
a aula ficava só em um compasso, para achar a sonoridade certa, outras,
repetia 50 vezes o mesmo ataque. Clouet me dava livros dos mais diversos
assuntos e depois questionava. Aprendi muito com ele. O meu professor no
Conservatório de Paris foi Gustave Dherin, onde fiquei de 1948 a 51.
Mas, por causa de doença, fiquei afastado por muito tempo e de fato
estudei com ele um ano. O ensino se baseava em muito “método” e estudos.
Por causa do tempo afastado, eu não era tão virtuoso assim, na verdade
eu peguei esses estudos depois. Mas os compositores gostavam como eu
tocava.
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Ariane - além da música, algum hobby? | |
Devos -
Trabalhei também com
arquitetura, sem ter estudado isso oficialmente. Mas fiz estágios com
arquitetos regionais e fiz trabalhos para eles. A arquitetura continua
como um hobby para mim.
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Ariane - sendo assim, posso chamá-lo de "o arquiteto do som"? | |
Devos - (sorriso agradecido...)
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O "portal do fagote" agradece sinceramente ao Prof. Noël Devos por esta
entrevista, bem como a Elione Alves de Medeiros e a Ariane Petri por
tê-la tornado possível e real...
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