conversa de fagotista

- antonio carlos garcia -

 

Antonio Carlos Garcia, obteve o diploma de bacharelado em fagote na Unicamp, tendo aulas com Prof. Paulo Justi; toca fagote na Orquestra Sinfônica Municipal de Americana e na Orquestra Filarmônica de Piracicaba. É Professor de fagote na Escola de Música de Piracicaba "Maestro Ernst Mahle". Com habilidades como copista, digitaliza partituras musicais em computador.

Atuava na Congregação Cristã no Brasil, repassando lá seus conhecimentos de fagote. Sempre chamou a atenção do portal do fagote a grande quantidade de músicos fagotistas atuando nas orquestras  da Congregação Cristã no Brasil e o cuidado que todos eles têm com seus instrumentos. Sem querer entrar em méritos da fé, o portal  entrevistou Antonio Carlos Garcia, um músico formado para além do âmbito da igreja, mas com trânsito nela, também com a finalidade de esclarecer a quem não participa da CCB, a importância da atividade musical ali exercida.

entrevista realizada em março de 2007

 

portal do fagote - Antes de falar sobre a música na Congregação Cristã no Brasil, falemos de sua atividade musical: como surgiu seu interesse pelo fagote?

Garcia – A primeira vez que vi e ouvi um fagote foi quando eu tinha 12 anos de idade. Nessa época eu era guarda-mirim (office boy) e tocava trombone na banda da guarda, instrumento que eu havia aprendido a tocar na Congregação Cristã no Brasil (CCB). Existia lá um saxofonista da banda da guarda que havia começado aprender fagote no Conservatório de Tatuí. Naquela época os músicos do Conservatório podiam trazer o instrumento para casa e, então, esse saxofonista da banda sempre levava o fagote para estudar depois dos ensaios diários da banda. Encantei-me com o som e pela aparência do fagote; achei-o um tanto exótico e diferente e me propus que um dia procuraria meios de comprar e aprender fagote.

 

portal do fagote  - quais foram as bases de sua formação musical?

Garcia – Tive contato com a música, desde meus primeiros dias de vida na própria CCB, igreja que minha mãe freqüentava muito antes de eu nascer. Lá, a partir de 8 anos de idade, aprendi o básico em teoria musical e o básico no aprendizado do trombone, instrumento que toquei na igreja por muitos anos.

 

portal do fagote  - estudar música no Brasil nem sempre é coisa fácil!...

Garcia – Desde muito criança eu tive de começar a trabalhar para ajudar nas despesas de casa e isso dificultou um pouco meu estudo musical. Nunca pude me dar ao luxo de pensar somente no estudo. Meu pai sempre teve enormes problemas com o alcoolismo e, fatalmente, isso me empurrou para o trabalho e ao mesmo tempo para o abandono dos estudos de uma maneira geral, o que não deixou de ser para mim um grande aprendizado de vida, um ótimo motivo para reflexões sobre os mais diversos setores e assuntos da vida e uma boa causa para que eu me tornasse um ser de personalidade definida e equilibrado, como me sinto. Penso que, por mais adversa que uma situação possa se mostrar, ela sempre pode ter algo a nos ensinar e a nos fazer crescer; tudo depende de um ponto de vista positivo interno, independente e desapegado de qualquer situação externa. Bem, acabei me tornando um metalúrgico, profissão que exerci por 12 anos, dos 15 aos 27 anos de idade, depois de deixar a guarda-mirim. Eu não poderia deixar de citar o enorme incentivo que o Hary me deu ao me vender um de seus fagotes com pagamento parcelado, sem que ao menos me conhecesse; esse crédito, por mim honrado, me proporcionou um instrumento profissional.

 

portal do fagote  - e o estudo específico do fagote?

Garcia – Meu primeiro contato no aprendizado do fagote foi na Escola de Música de Piracicaba (EMP). Por mais de dez vezes fui até essa escola procurar por aprender fagote, mas minhas condições financeiras nunca permitiam. Até que um dia uma pessoa conhecida ,que também freqüentava a igreja, trabalhando na escola me fez uma sugestão: "uma vez que o coral estava carente de vozes masculinas e como eu não tivesse meios de pagar a mensalidade, que eu me oferecesse a cantar no coral em troca das aulas de fagote". A diretora escola, Dona Cidinha, esposa do maestro Ernst Mahle aceitou de pronto minha proposta e então comecei a ter aulas de fagote com Francisco Amstalden, um dos fagotistas da Orquestra Sinfônica de Campinas. Depois de somente 3 ou 4 aulas o Francisco ficou impossibilitado de continuar a vir para Piracicaba. Então o Maestro Mahle passou a me dar aulas quinzenais de fagote; fagote não era a especialidade dele mas me ajudou muito no desenvolvimento musical pois, além de fagote, ele também me ensinava teoria, história da música e harmonia. Fiz aulas com o maestro Mahle durante um ano e meio. Em 1966 estudei no Conservatório de Tatuí com a fagotista Solange Coelho. No início de 1997 iniciei o bacharelado em música, modalidade fagote, na Unicamp, tendo aulas de fagote com Paulo Justi, conhecido nacionalmente. Terminei a faculdade de música no final de 2001. Depois da faculdade fiz algumas aulas particulares com o fagotista Francisco Formiga, um dos fagotista da OSESP que, além de ótimo fagotista, é conhecido confeccionador e pesquisador de palhetas. Atualmente não estou tendo, mas estou precisando de aulas de fagote.

 

portal do fagote  - entre os fagotistas, quem mais o marcou?
Garcia – Dentre os fagotistas com quem tive aulas, em cada um deles observei características peculiares, considerando que em um músico profissional há uma enorme quantidade de detalhes técnicos, pessoais e comportamentais, detalhes, esses, não presentes em igual porcentagem em todos os profissionais. Eu poderia citar algumas características que observei neles: Paulo Justi me marcou devido à intensa expressividade com ele toca, percebe a música e orienta a prática de orquestra e música de câmara aos seus alunos; afinal de contas ele foi aluno do grande mestre Klaus Thunneman, durante alguns anos, de maneira regular; Ricardo Aurélio, um dos fagotista da Sinfônica de Campinas e professor no Conservatório de Tatuí, pelo conhecimento de repertório e pela técnica apurada; ele toca, praticamente, grande parte do repertório para fagote de maneira perfeita, além de ser detentor de vários prêmios; Francisco Formiga, com muita experiência como músico de orquestra e de câmara, detalhista e metódico (no ensino do fagote e no ensino de confecção de palhetas) ao máximo, sem deixar de lado a musicalidade.

 

portal do fagote  - onde exerce seus conhecimentos de fagote?

Garcia – Atualmente estou tocando na Orquestra Filarmônica de Piracicaba e na Orquestra Sinfônica Municipal de Americana. Tenho, também, me ocupado bastante com digitação de partituras no computador; hoje em dia minha sobrevivência material é provida mais pelo trabalho de digitação que pelos meus trabalhos como músico de orquestra.

 

portal do fagote  - e sua participação na Congregação Cristã no Brasil?

Garcia – Fazem cerca de três anos que não freqüento mais a CCB, apesar de ainda ter muitos amigos por lá. Com 8 anos de idade iniciei os estudos musicais na “escolinha musical” da CCB e, com 12 anos, fui “oficializado” (o que significa dizer: terminei todo o programa de estudo exigido para se tornar músico integrante da orquestra oficial). Toquei na orquestra da CCB durante 20 anos e, por alguns anos durante esse tempo, cooperei, de maneira voluntária, como professor na referida escolinha.

 

portal do fagote - como é pensada a música nas orquestras da congregação?

Garcia – A qualidade musical na CCB é pensada de maneira pouco exigente. Há a tradição de se pensar que o músico necessita apenas dos conhecimentos musicais básicos. Isso freqüentemente leva a músicos com formação deficiente, sem noções razoáveis de teoria, de história da música, de história da música religiosa, de percepção melódica e rítmica, afinação, articulação, prática de conjunto, sonoridade, didática, etc. Até entendo esse tipo de concepção de formação musical pois, o cargo de músico na CCB, deve ser pensado levando em conta que todos os integrantes masculinos da igreja tenham a oportunidade de se tornar músicos, mesmo que a grande maioria desses músicos (90% ou mais) tenham outras profissões no dia a dia, sem terem, portanto, tempo suficiente disponível para se dedicarem e se aprofundarem no estudo musical clássico. Na CCB somente os homens podem se tornar músicos na orquestra, pois, durante os cultos, os homens sentam-se separados das mulheres (esse e muitos outros detalhes, na minha opinião, somente a fé explica, se é que explica...). Também vale considerar novamente a questão da fé: todos os músicos acreditam estar atendendo a um chamado realizado por Deus, detalhe considerado mais importante que o conhecimento musical em si. Apesar do repertório musical ser exatamente o mesmo há 40 anos, em todos os templos há um ensaio musical mensal, o que não resulta em uma melhor performance da orquestra, considerando os fatores acima expostos.

 

portal do fagote - como se dá a formação do músico?

Garcia – Em praticamente todos os 17.000 templos, espalhados pelo Brasil, existe uma escola de música onde alguns dos músicos “oficializados” (já formados pela CCB) são convidados a repassarem de maneira voluntária os conhecimentos musicais que receberam gratuitamente. Esse voluntarismo, aliado à questão do “chamado por Deus”, resulta em uma quantidade enorme de músicos. Só para se ter uma idéia, em Piracicaba há por volta de 350 músicos oficializados espalhados pelos 36 templos existentes na cidade. Estimo, com uma grande margem de acerto, que no Brasil todo deve haver por volta de 180.000 músicos oficializados e igual número de alunos em formação; além dos demais músicos e alunos espalhados pelos outros templos dos outros 45 países do mundo onde a CCB também atua. Apesar de eu não valorizar a quantidade sem qualidade, com certeza nenhum outro grupo religioso ou organização qualquer, possui um conjunto musical tão grande como o da CCB. O mais interessante é que esse batalhão de músicos banca, por conta própria, a compra e a manutenção de seus instrumentos musicais. Como se pode perceber, além de mover montanhas a fé também forma grandes conjuntos musicais. Apesar desses músicos não serem profissionais e, portanto, não apresentarem desempenho que possa ser considerado profissional, eles participam da orquestra com muita alma e paixão, fazendo o melhor que podem com base no limitado aprendizado que possuem.

 

portal do fagote - qual o papel da música no culto?

Garcia – Nos cultos a música tem o papel principal de acompanhar o canto, que é cantado de maneira conjunta e “de ouvido” por todos os demais integrantes da CCB, sem formação musical alguma. Os hinos são pura música coral, com as quatro vozes tradicionais e com uma nota para cada sílaba do texto; a música orquestral simplesmente repete essas notas como se os instrumentos estivessem cantando a parte coral; não há um arranjo orquestral acompanhando o coral. Tudo é pensado e organizado de maneira muito simples. A harmonia, a melodia e a rítmica dos hinos é algo muito básico e simples; a fé sempre vem em primeiro lugar sem se importar tanto com a sofisticação musical e performática.

 

portal do fagote - até agora falamos sobre a participação dos fagotistas nestes conjuntos. Quem escolhe os instrumentos; qual a aceitação que tem o fagote;  que outros instrumentos fazem parte deste conjunto?
Garcia - Os instrumentos são escolhidos, geralmente, pelos próprios músicos durante o início do aprendizado e, muito raramente, é sugerida a escolha de um instrumento que está mais em falta na orquestra. As orquestras tem uma composição instrumental muito desequilibrada, devido à falta de orientação na escolha. Há instrumentos como a viola, o violoncelo, o oboé, o fagote, a trompa e outros instrumentos menos comum e menos divulgados na mídia em geral, que raramente existem nas orquestras, enquanto instrumentos mais comuns, como o saxofone, clarineta, trompete e trombone existem muitos. A orquestra é formada por metais, madeiras e cordas, menos instrumentos elétricos, percussão, piano, harpa, trombone de vara e contrabaixo acústico (por motivo de falta de espaço físico entre os bancos da igreja). Esse desequilíbrio na formação instrumental da orquestra deixa-a com uma sonoridade um tanto estridente e diferente de uma orquestra profissional, além de ficar indefinida quanto ao tipo de conjunto (não é uma orquestra pois há pouquíssimas cordas e muitos metais; não é uma banda de concerto pois há cordas, mesmo que poucas; não é uma jazz sinfônica pois faltam instrumentos elétricos e percussão; o tipo de conjunto fica indefinido). O fagote até é bem aceito na orquestra mas nem sempre incentivado como deveria ser, pois os maestros desconhecem totalmente esse instrumento. Quando passei a tocar fagote na CCB eu tive de explicar para o maestro, na hora do teste para ingressar na orquestra, qual era a voz que o fagote tocaria, qual era a clave de leitura, tessitura, método usado, dedilhado, posição na orquestra, etc.

 

portal do fagote - quer me parecer que os músicos nem sempre fazem alarde de sua participação nas orquestras da congregação. A lista dos fagotistas participantes estaria muito incompleta?

Garcia – creio que faltam, sim, na lista dos fagotistas participantes, muitos fagotistas que atualmente tocam na CCB. Vendo a lista dos participantes posso calcular que nem metade dos fagotistas da CCB estejam inscritos nessa lista. Talvez pudéssemos sugerir aos fagotistas, da CCB, inscritos na lista, que incentivem outros a se inscreverem ou passem seus dados pessoais a alguém que esteja inscrito para que possa inscrevê-lo, também.

 

veja aqui a relação dos fagotistas atuando em orquestras da Congregação Cristã no Brasil e em demais igrejas

 

portal do fagote - a partir de sua experiência de vida, que mensagem gostaria de transmitir?

Garcia – Penso que, fagotisticamente falando, eu não sou a pessoa mais indicada em dar conselhos ou transmitir experiências mas, de qualquer maneira eu posso dizer alguma coisa a respeito. Como conselho, sugiro que nós, músicos, não desanimemos com as dificuldades da profissão: salários nem sempre atraentes, maestros nem sempre com bom controle e manuseio psicológicos, colegas de trabalho nem sempre totalmente entusiasmados e comprometidos com o trabalho, etc. O que importa é que estamos fazendo o que gostamos, produzindo arte e, ainda mais, arte musical, a única verdade realmente sentida e comprovada, de acordo alguns notáveis filósofos. Quanto aos alunos, sugiro que as dificuldades decorrentes do aprendizado não sejam alimentadas mais que o prazer que a arte, a experiência do belo e o “tocar fagote” podem proporcionar. O fagote é um instrumento grande, pesado, desajeitado; trabalhando em uma grande extensão de notas, em diferentes claves de leitura musical, usando uma palheta de difícil ajuste que tem de tocar, antes mesmo, que se pense em tocar o fagote; de custo de aquisição e manutenção caros, ainda mais quando o talento e a vocação para a arte não escolhe classe social. Por experiência própria, mesmo ainda não tendo podido me dedicar ao estudo como eu sempre imaginei, considero que vale a pena todo tipo de esforço quando o caso é produzir arte fazendo uso de um instrumento um tanto exótico e de sonoridade maravilhosa, como é o fagote. Agradeço a oportunidade de ter sido entrevistado por esse portal, que aos poucos está conquistando importância e hoje é uma ferramenta de comunicação, troca de informações, divulgação de conhecimento e suporte técnico indispensáveis

 

portal do fagote - ainda alguma informação a dar que complemente o que foi conversado?

Garcia – Deixei de relatar, talvez, o mais importante de tudo. Tenho extremo respeito pela CCB e por seus membros. Depois que deixei de freqüentar a CCB passei a me aprofundar mais na questão do auto-conhecimento e hoje, por uma questão de auto-respeito, respeito a crença, o comportamento e as escolhas das pessoas como nunca. Quando, por algumas vezes, me referi à questões ligadas à fé, fiz isso sem a mínima intenção de desrespeito pelo fato de eu entender que também já participei disso e muito mais, ainda, por eu entender que para Deus (independente de diferentes concepções a respeito Dele) todas as almas são especiais e necessárias, e, que cada uma atinge a realização metafísica de uma maneira muito particular e muitas vezes inexplicável. Reconheço todos os seres do universo como meus irmãos e, por isso, sempre estarei à disposição para cooperar com todos, inclusive com meus queridos irmãos da CCB.

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