conversa de fagotista

mário câncio justo dos santos (1927-2008)

(in memoriam)

O maestro Mario Câncio Justo dos Santos faleceu no dia 8 de fevereiro de 2008 às 19h, no Hospital Santa Joana, vitimado por infecção generalizada.

Através do testemunho do fagotista Elione Alves de Medeiros, seu aluno, e do retrato literário de Ana Paula Gomeze, o portal do fagote presta uma homenagem ao maestro e fagotista Mário Câncio.

Sejam esses textos autêntica conversa de fagotista com Mário Câncio.

 

 
"Mario Câncio foi o responsável por eu ter iniciado meus estudos musicais. Eu o conheci quando me inscrevi num curso gratuito de francês numa biblioteca pública de um bairro vizinho em Recife. Foi ele que me apontou o fagote dizendo: "aquele instrumento que está no canto da parede chama-se fagote e você vai estudar nele. Se você tocar bem esse instrumento, você terá sempre um emprego em orquestra". O fagote tornou-se então o meu primeiro e definitivo instrumento. Ele estava certo. Depois de uns 3 meses de aulas ele convidou a classe inteira para estudar música na Escola de Belas Artes de Recife. Todos os colegas queriam estudar piano ou violão e alguns, flauta. Eu não tinha noção de nada apesar de meu pai ser trombonista amador na época. Foi então que ele simplesmente me indicou o fagote que vi pela primeira vez em minha vida com surpresa! Iniciei meus estudos de teoria, solfejo e fagote, tudo ao mesmo tempo, quando tinha mais ou menos 16 anos.

Na verdade, quando me dei conta de quem era Mario Câncio, descobri que além de professor de fagote, ele era maestro da Orquestra Sinfônica de Recife e já não tocava fagote há muito tempo! Raros foram os momentos em que ele sacou alguma nota no fagote para me mostrar uma ou outra posição. Eu então ligava a sua figura sempre a de maestro, nunca de fagotista. Isso é curioso e tento ainda hoje entender o porquê.

Foram 3 anos de estudos com interrupções de ordem financeira e de falta de estímulos. Ora eu não tinha como estudar, porque o fagote ficava na escola e quando eram férias as escolas fechavam; ora faltava grana para o ônibus, ora minha família não me dava força; enfim, depois disso fui tentar a vida tocando trompete (enquanto estudava fagote).

Certa vez o maestro me descobriu com um trompete e ficou com muita raiva e disse-me que não mais me daria aulas; passei um tempo sem o fagote, até que me transferi para Brasília...

Meus caminhos com o fagote foram caminhados com meus pés, contudo quem me ensinou e me fez dar os primeiros passos nessa estrada desconhecida foi ele. Todos os outros alunos da escola desistiram de estudar, eu permaneci até o dia em que ele não me aceitou mais. Mas continuou meu amigo quando nos reencontramos.

Ironicamente enviei meu CD para ele com uma carta falando da minha gratidão e carinho; nem essa carta nem o CD chegaram até ele. Depois de dois meses a carta e o CD retornaram porque o endereço que me deram estava errado...Só me resta apelar pela aceitação dos fatos e me resignar!

Guardo no coração os melhores sentimentos e agradecimentos, e na mente as melhores recordações de ensino, nobreza de caráter e bons exemplos que recebi desse mestre."

Elione Alves de Medeiros

Mário Câncio à frente da Orquestra Sinfônica de Recife; ao fagote Elione Alves de Medeiros (16 anos)

 

O REGENTE PATRIMÔNIO DE OLINDA
 por Ana Paula Gomeze
artigo publicado no site da Prefeitura de Olinda em 15 de março de 2005
 

"Mário Câncio nasceu em Recife, mas passou a morar em Olinda com três meses de vida. Desde criança teve uma vida estudantil muito intensa. Foi ensinado pelos pais a encarar os estudos com muita dedicação e responsabilidade. “Não tive muito tempo para brincar”, lembra com uma certa gratidão, pois atribui isso ao fato de ter conseguido superar as dificuldades financeiras e hoje poder estar em uma posição que o possibilita ajudar outras pessoas.

A música entrou na vida de Mario Câncio como uma melodia que começa suave e progressivamente vai se intensificando. No período em que cursava o fundamental I (1ª a 4ª série), na escola Paroquial Carlos Gonçalves da Igreja Católica São Judas Tadeu, iniciou os primeiros contatos com o mundo musical. Como um menino travesso e curioso brincava, escondido do padre, com as teclas e os sons emitidos pelo piano da igreja.
Paralelo aos estudos, Mario fez escotismo e foi nomeado pelo governador Agamenon Magalhães, chefe de Escotismo de Olinda da tropa Escoteira Duarte Coelho. Ainda na mesma ocasião, ingressou na Orquestra Sinfônica do Recife, levado pelo seu criador e maestro principal, Vicente Fittipaldi. Pouco tempo depois sua dedicação e talento foram logo reconhecidos e ele foi nomeado professor auxiliar. Esse foi seu primeiro emprego, com 15 anos de idade. Tocava fagote, clarinete e sax.
Apesar de todo seu envolvimento com a música, o pequeno musicista demorou a ter um instrumento por conta da vida humilde que levava até então. Só veio ter o gosto de possuir seu primeiro instrumento musical aos 25 anos, um fagote que guarda até hoje, presenteado pelo governador Etelvino Lins.
Ele não sabia, mas dois anos mais tarde, em 1954, sua vida ia começar a mudar por completo. Na ocasião, Mario participou de um concurso do Ministério da Educação e Cultura (MEC) que daria ao vencedor uma bolsa da Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES), para estudar música no Conservatório Nacional Superior de Música de Paris. O concurso foi presidido pelo compositor brasileiro Heitor Vila-lobos, que percorreu vários estados do País em busca de talentos.
Mario foi selecionado, abraçou a oportunidade e partiu para França. Lá passou cinco anos sempre se empenhando com as lições da infância de aproveitar ao máximo o tempo e as oportunidades. Além dos estudos no Conservatório de Paris, Fez vários cursos de extensão e aperfeiçoamento, em Siena na Itália, Salzburg, na Áustria dentre outras. Totalizando, a paixão pela música e a vontade de aprender sempre mais, levou o musicólogo por nove países da Europa e três da América.
Estudou também por dois anos no Conservatório Internacional de Música e Arte dramática de Versailles. Foi lá que recebeu dois dos principais prêmios de sua vida estudantil. O Premier Prix ( primeiro prêmio) e o Prix D’honneur (prêmio de honra). Os prêmios são concedidos pelo Conservatório aos concluintes que se inscrevem e passam pela análise de uma banca examinadora.
Em Paris, tornou-se regente da Orcheste de Chambre International (Orquestra Internacional de Câmara) e através de movimentos de política estudantil foi eleito delegado cultural e integrante da comissão do Centre Culturel Internacional de la cité universitaire/Sorbonne. Todas essas vivências deram a Mario um legado de conhecimentos musicais que foram lhe conferindo reconhecimento nacional e internacional. Para voltar ao Brasil, o maestro recusou várias propostas de trabalho e permanência no exterior.
DE VOLTA A TERRA NATAL

 

Assim que chegou ao Recife, foi convidado para trabalhar na Orquestra Sinfônica do Rio de Janeiro, mas recusou por conta do compromisso assumido com o prefeito José do Rego Maciel, continuar trabalhando na Orquestra de Recife.
Foi convidado também pelo reitor João Alfredo Gonçalves da Costa Lima, da Universidade do Recife (atual UFPE), para fundar o curso de música na instituição. Aceitou o desafio, venceu preconceitos e, juntamente com Jaime Diniz, Arlindo Rocha, Edson Magalhães, Elyanna Caldas, José Carrión e Luiz Real fundaram o curso em 1960.
Paralelamente, em Brasília, o presidente Jucelino Kubitschek promulgava a lei que instituía a Ordem dos Músicos do Brasil, que foi presidida pelo maestro José Siqueira, que por sua vez, convidou o recém chegado maestro Mario Câncio para fundar, em Pernambuco, o Conselho Regional da Ordem dos Músicos do Brasil.
No currículo do maestro tem ainda o convite do governador do Rio Grande do Norte, em 1976, fundar uma orquestra em Natal, que uma vez estruturada tornou-ser Orquestra Sinfônica do Rio Grande do Norte, a qual dirigiu por 12 anos.
NA MARIM DOS CAETÉS

 

Foi em 1982 que o maestro veio usar seu talento na cidade Patrimônio da Humanidade, convidado pelo prefeito Germano Coelho para fundar o Centro de Educação Musical de Olinda (CEMO).Entidade Educacional destinada a formação musical erudita de nível médio. O CEMO oferece vários cursos para todos os níveis, do inicial a cursos de aperfeiçoamento. Tem cursos específicos: de Musicalização Infantil para crianças a partir de 6 anos, de Formação Musical para adolescentes e adultos e, os de Curta Duração dirigidos às pessoas da 3ª idade. Assim, ele finalmente pôde trazer para a cidade o sonho de tornar a música mais acessível a todos e ajudar muitos a encontrar nesta arte uma porta para um futuro melhor.
Desde então, o maestro vem regendo com movimentos que representam a pulsação e os ritmos de seu coração, muito mais que uma orquestra, mas o sonho de trazer vida e esperança através da música."
Adendo do portal:
O histórico e popularmente conhecido Casarão Rosa localizado no complexo de Salgadinho, onde funciona o Centro de Educação Musical de Olinda, já não abriga mais o coração de um homem que teve origem humilde, viajou por vários países do mundo seguindo o caminho da música, para então retornar e tornar mais acessível a todos, a arte de ouvir, combinar e dar vida aos sons.
Mario Câncio Justo dos Santos, carinhosamente e reconhecidamente chamado por todos de Maestro, fundador do CEMO, faleceu no dia 8 de fevereiro de 2008.
 

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