conversa de fagotista

- rogério gonçalves -

 

Navegando na internet o portal do fagote encontrou uma intrigante matéria, sob o título "Piano não dá, mas tem fagote"; e assim descobriu que em terras européias, mais precisamente na Suiça, atua um fagotista brasileiro de Londrina (PR).

Através dos mesmos recursos da internet o portal do fagote buscou saber mais a respeito de Rogério Gonçalves, um músico por aqui desconhecido,  e estabeleceu com ele um contato, que resultou nesta conversa de fagotista

 realizada em abril de 2008

 

portal do fagote - Todos por aqui sabem da atuação de um fagotista brasileiro na Suiça, Afonso Venturieri.  Mas foi uma surpresa tomar conhecimento que mais um fagotista faz sucesso  por lá. Como aconteceu de Você parar na Suiça?

Rogério Vim à Suiça para estudar música antiga em Basiléia e Genebra. Em Genebra encontrei minha “cara metade”, me casei, compramos uma casa nas montanhas do Jura (perto de Lausanne e do lago Leman). Tivemos três filhos: Iara (7 anos), Ester (3 anos) e o Ruben (7 meses). Foi assim que eu fui parar na Suiça e eu acho que vou “parar” pra sempre por aqui.

 

portal do fagote  - como se deu o contato com o fagote, um instrumento que no Brasil ainda tem um certo ar de raridade?

Rogério O meu primeiro contato com o fagote aconteceu em Londrina no Paraná, minha cidade natal, onde existe uma orquestra sinfônica, a “Orquetra Sinfônica da Universidade Estadual de Londrina”. Lá, dei meus primeiros passos no estudo do fagote assim como meus primeiros contatos com a música orquestral.

 

portal do fagote  - com quem teve a iniciação ao fagote?

Rogério De início minha formação foi puramente autodidata, pois em Londrina não existiam professores. Aprendi toda a base do estudo fagotístico sozinho... Me lembro muito bem de ter ficado horas tentando decifrar as tabelas de posições do instrumento e muitas outras horas tentando descobrir como se fabricaria uma palheta. Nessa época eu estudava em média oito horas por dia tentando decifrar os enígmas de um instrumento totalmente desconhecido para mim mas que me fascinava. Depois desse período de “descoberta” eu tive a oportunidade de acompanhar os cursos de fagote do Festival de Música de Londrina. Nesse festival eu tive aulas com Alejandro Aisemberg (Argentina), Pedro Sierra (Chile) e Elione Medeiros (Brasil).

 

portal do fagote  - e a formação específica de música antiga?

Rogério Em Londrina eu tive a felicidade de fazer parte de um grupo de música antiga (que infelizmente não existe mais) o “Arabesco”. Os integrantes desse grupo faziam também parte da Orquestra Sinfônica da Universidade e foi lá que nos encontramos. Em 1990, nós do grupo "Arabesco" decidimos que deveríamos nos aprofundar no estudo da interpretação da música antiga. Então partimos todos juntos à Suiça (em Basiléia) para um estudo na famosa “Schola Cantorum Basiliensis”, onde eu segui os cursos do professor francês Claude Wassmer. Esse estudo no meu caso durou cinco anos, até 1995, terminando com um diploma em fagote barroco e um outro de música medieval. A partir de 1995 eu segui num aperfeiçoamento com o famoso professor argentino Lorenzo Alpert (considerado o melhor do mundo); isso aconteceu no setor de música antiga do Conservatório de Genebra, onde eu recebi um diploma de fagote barroco em 1999.

 

portal do fagote  - e do fagote “moderno”  ao fagote “antigo”; como foi esta transição e/ou adaptação?
Rogério No meu caso o pulo não foi tão grande, pois eu tocava muito mal o fagote “moderno”, nenhuma técnica, nenhuma afinação, nada. Eu tive que começar o fagote barroco do zero. Aprendi a verdadeira técnica do instrumento, todas as artimanhas da fabricação das palhetas, embocadura, restauração, enfim todo o aprendizado do instrumento eu tive na Europa.

 

portal do fagote  - como se sente um brasileiro na Suiça?

RogérioMuito bem obrigado! Me sinto muito bem na Suiça. É verdade que nós podemos nos sentir um pouco colocados à parte pelos colegas músicos, sendo de um país tão distante, famoso por seu futebol, por sua pobreza e violência; as pessoas tem um certo receio ao primeiro contato conosco. Eles fazem muitas perguntas com relação ao país e ao estudo e à vida musical brasileira. Eles sempre se espantam em saber que no Brasil existem conservatórios e orquestras sinfônicas.

 

portal do fagote  - onde está centrado seu campo de atuação?

RogérioToco muito aqui na Suiça com os grupos “Ensemble Elyma”, “Capriccio Barockorchester”, “Swiss Consort”, “Ensemble Ad Fontes”, “FreitagsAkademie”, “Ensemble Turicum” e “Ensemble Baroque du Léman”. Faço parte de uma orquestra barroca na Áustria, “L'Orfeo Barockorchester”. Na Holanda eu toco na “Nederlandse Bachvereniging”. Na França, eu toco na Orquestra “L'Hostel Dieu” de Lyon. Na Espanha com o grupo galego “Resonet” e na Itália com a “Capella dei Turchini” de Nápoles.

 

portal do fagote - como dá conta de tamanha atividade?
Rogério Eu estou sempre viajando... Todas as semanas eu estou em um país diverso tocando os mais diferentes repertórios e que são no meu caso: barroco, clássico e romântico, e sempre com o respectivo instrumento com a sua afinação da época. Normalmente os concertos acontecem nos finais de semana e os ensaios começam sempre ou na quarta ou quinta-feira. Por isso eu sempre estou em casa na segunda e terça-feira para poder me preparar para o concerto da semana e logicamente para poder dedicar-me a minha familia.

 

portal do fagote - tem algum compositor preferido ou alguma música em especial?

Rogério Tenho como meus compositores prediletos Jean-Philippe Rameau (que escreveu belíssimas óperas nas quais o fagote tem um papel predominande e difícil) e Wolgang Amadeus Mozart (que é para mim um fonte infinita de inspiração). Eu também gosto muito da música ibérica do século XVII por sua riqueza harmônica e rítmica.

 

portal do fagote - pensa em voltar ao Brasil?

RogérioVolto ao Brasil só para visitar a minha família em Londrina. Não seria possível morar no Brasil, pois sou casado com uma holandesa e ela é muito alérgica às picadas de inseto (por isso uma vez ela já foi parar no Hospital...). E inseto é coisa que não falta no Brasil, não é?

 

portal do fagote - e "A Corte Musical", seu conjunto da foto do cabeçalho desta conversa?

Rogério É um trabalho que comecei já há alguns anos. A Corte Musical é um grupo de música que interpreta a música antiga da península ibérica dos séculos XVI e XVII. Atualmente trabalhamos muito o repertório dos vilancicos portugueses do século XVII, provenientes do arquivo da Biblioteca Pública de Évora. Uma música maravilhosa com texto em vernáculo. Já gravamos três discos, um deles recebeu na Holanda o prêmio de melhor disco barroco do ano de 2007 e outro um “5 diapasons” na França.

 

portal do fagote - Na França temos Ricardo Rapoport, também um fagotista brasileiro, que igualmente tem vasta atuação com fagote barroco; Vocês mantém algum intercâmbio?
Rogério Infelizmente não mantemos nenhum contato. Só nos encontramos em uma ocasião em Paris em 1992, ele foi muito simpático me deu uma boa impressão do seu trabalho. Nessa ocasião só conversamos alguns minutos e depois tchau, nunca mais nos vimos. Eu escutei o seu último disco com as sonatas de Dard, um disco bem interessante...

 

portal do fagote - É de seu conhecimento o que acontece em Juiz de Fora (MG), com seus festivais de inverno abordando a música colonial brasileira e registros fonográficos daí advindos?
Rogério Só conheço o festival de Juiz de Fora pelo nome, nunca participei a um de seus eventos. Admiro muito o trabalho desse festival com relação à redescoberta do repertório do período colonial do Brasil, mas os discos daí advindos foram infelizmente de muita má qualidade. Atualmente eu não sei se a qualidade dos discos melhoraram... deve ter melhorado, pois me disseram que esse festival possui atualmente uma orquestra barroca dirigida por um ótimo violinista. Devo dizer que a música colonial me interessa muito. Como fagotista do grupo suiço de música antiga "Turicum" já participei da realização de quatro discos de música colonial. Devo dizer que nossos arquivos possuem verdadeiras pérolas e que essas jóias devem ser mostradas ao público.

 

portal do fagote - que diria ao estudante brasileiro que pensa em estudar e/ou atuar na Europa?
Rogério Que não pare de sonhar... com amor e dedicação tudo é possível. Que o fato de ir estudar e por conseqüência morar na Europa possa parecer um “bicho de sete cabeças”, não é verdade. Com força e vontade todas as portas se abrirão. O mais importante é de aprender bem a língua do país onde irá estudar e de sempre estar aberto ao aprendizado que irá ter e de obviamente estudar o instrumento a 2000 por cento. Mas o mais importante de tudo é de amar muito o fagote, pois ele é um senhor muito exigente e ingrato...

 

portal do fagote - Rogério, parabéns por suas atividades; agradecimentos por esta conversa informal e descontraída.

 

Tomamos a liberdade de reproduzir abaixo o texto encontrado na internet, no site de SWISSINFO, que deu origem a esta conversa e nos fez conhecer Rogério Gonçalves:

 

 

swissinfo.ch

reportagem de 17 de dezembro de 2004

J. Gabriel 

   

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“Piano não dá, mas tem fagote”

Esta a resposta que Rogério Gonçalves, adolescente, recebeu do maestro que criava uma orquestra sinfônica em Londrina.

Pegou o fagote mesmo e hoje, na Suíça, com 33 anos, vive do instrumento, tocando música medieval, renascentista e barroca.

Com 14 anos, Rogério nem sabia o que era um fagote. Mas desde os oito já arranhava um piano. Hoje, casado e estabelecido na vida, em Lausanne, onde vive com a esposa holandesa, lembra com bom humor como se despertou para a música erudita.

Recorda-se dos tempos em que, ainda criança, ficava encantado com o piano de uma prima que a família visitava aos domingos. Quando a prima tocava “eu achava bonito, sentia aquela pressão na barriga, aquela vontade...”

Nada o orientava para a música. Não havia tradição musical na família. Os pais e os irmãos não tocavam instrumento algum. Na sua casa em Londrina, no Paraná, “não tinha rádio, não tinha toca-discos, nada... Fui eu quem comprou o primeiro toca-disco. Televisão, sim, lógico, no Brasil não pode faltar”.

 

“Queria oboé, me deram fagote”

Se a música não fazia então parte de sua vida, recebeu apoio da mãe quando quis tocar piano. Arranjou-se logo uma professora, uma velhinha de 83 anos ! Provavelmente pouco eficiente – a não ser que o menino não desse mesmo para o instrumento – pois seis anos depois não sabia tocar nada comme il faut.

Mas a sorte vem aos 14 anos com a criação de uma orquestra sinfônica na Universidade de Londrina, idéia um tanto louca de um dirigente de coral da cidade (Antonio Benvenuto), uma personalidade local.

Rogério vai oferecer seus préstimos como pianista, ao “louco” Benvenuto. “Piano não dá, mas tem fagote”, diz o maestro. “Que é isso?”, espanta-se o jovem, “eu quero oboé”. Mas acabou aceitando a proposta: ficou com o fagote e diz ter adorado.

Dedicando até 10 horas diárias ao instrumento já o dominava um ano depois, prazo que recebera para aprender.

O fagotista lembra-se ainda de algumas das primeiras peças tocadas na orquestra londrinense: Summertime, de Gershwin (da ópera Porgy and Bess), Coração de estudante, de Gilberto Gil e Finlândia, de Sibelius. “Por falta de público (interessado) tinha que se misturar tudo”, avalia Rogério.

 

Virada na carreira

A proposta de componentes da Orquestra de fazer música antiga ia representar novo rumo na sua carreira do fagotista ainda pouco calejado, uma experiência de que vai gostar. Mas em 1990 envereda por novo caminho, quando o grupo de 5 músicos (dois fagotes, dois violinos e canto) é convidado para estudar na Schola Cantorum Basiliensis, instituição bem conhecida de Basiléia, no noroeste suíço.

Em meio a dificuldades de custear os estudos, Rogério Gonçalves pôde desvendar horizontes ignorados, aprofundando conhecimentos na área da música barroca, renascentista e medieval. Foi assim que tocou até bombarda, de que deriva o fagote, tirando 5 anos depois, em 1995, um certificado de estudos, inclusive em música medieval.

Como era um “diploma de externo” (não profissional), Rogério prosseguiu ainda, durante 4 anos, os estudos no Conservatório de Genebra, consagrando-se unicamente ao fagote barroco, à harmonia, à notação antiga... Envolve-se, então, muito mais com teoria. (Em Basiléia os estudos foram mais práticos).

Em 1999 recebeu o diploma de “musique ancienne” (música antiga) que lhe permite até ensinar em conservatórios.

 

Vida profissional

Na Europa, Rogério pôde mostrar seus talentos já desde 1992 – dois anos após chegar à Suíça – atendendo a convite para tocar “umas óperas”. Convite formulado pela orquestra parisiense La Grande Ecurie et la Chambre du Roi.

Mas, principalmente em Basiléia, ele devia se virar para pagar os estudos e para viver. Fazia concertos aqui e ali e inclusive trabalhou durante 4 anos em restaurante americano de fast-food.

No período de estudos em Genebra, onde as taxas eram o dobro, já conseguia pagar as taxas de conservatório somente com participação em concertos.

E hoje, Rogério Gonçalves, se descreve como freelancer, só fazendo concertos. Mas acontece de ser convidado para dar aulas em festivais. Resultado: viaja com freqüência, principalmente nos fins de semana, para a Itália, França, Alemanha...

A vantagem, diz, é de ser chefe de si mesmo. A desvantagem é uma certa precariedade. Se há orquestras que sempre o chamam, nada é fixo: “Na música antiga, na música barroca, não é como na música moderna em que você é empregado de uma orquestra. Me chamam. Me pagam e tchau”.

 

Independência

O fagotista tem também seu grupo e organiza por própria conta os concertos que lhe são solicitados. E parece apreciar essa vida de músico independente, apesar de uma situação instável, resultante da dita precariedade.

Muito cioso de sua independência, Rogério realça gostar da música antiga, inclusive do barroco, porque ela proporciona ao intérprete liberdade de “adaptar, de utilizar a partitura. Liberdade de orquestração, de adaptação, de... invenção”, ou seja, a possibilidade de “botar o próprio jeito dentro de uma peça”, comparável ao que ocorre no jazz nos dias de hoje

O artista aprecia a música pouco explorada e diz adorar “o que não é conhecido e bonito”, como o Calendarium Musicum do compositor austríaco (do final do barroco), Gregor Joseph Werner, que gravou há dois anos.

 

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