CORREIO BRAZILIENSE, 8/9/1996

TALENTO NAS MÃOS

Foi assim. Num sábado qualquer de 1989, roda de amigos jogando conversa fora, veio a sugestão, quase um desafio: "Você faz tantas coisas, porque não constrói um fagote?" Por vários dias a pergunta ficou fermentando na cabeça do professor de música Hary Schweizer. Mais que o caldo de cana no alambique, que ele próprio construíra, para fazer a cachaça tão apreciada pelos amigos. Não era assim tão absurda a sugestão. "Veio a imagem do pai inventando coisas no interior de Santa Catarina, em Mafra, cidade onde nasci", lembra Hary. "Ele viera da Alemanha, depois da primeira Grande Guerra".  Foi inspirado no pai que Hary Schweizer se tornou em 1991 o primeiro construtor do Brasil e, segundo ele mesmo, "talvez o único da América Latina. Se existe algum outro artesão, deve estar escondido e não divulgou seu evento". O pai Antonio Schweizer chegou ao Brasil com a esperança de conseguir terras para plantar. Com boa vontade, o matão do interior catarinense lembrava sua terra natal - a região Sul da Alemanha, perto da Floresta Negra, quase fronteira com o organizado povo suíço. Daí o nome de família, que significa "aquele que vem da Suíça". Aqui no Brasil, seu Antonio fez de tudo um pouco. Animou bailes no interior com o seu violino - "pelo menos era o que ele contava", diz Hary. Ele viu o pai inventar uma máquina para fazer vinho de laranjas. Seu Antonio também fez aguardente de pêras. Chegou mesmo a patentear uma máquina que descascava e beneficiava babaçus!

FAMÍLIA CONSERVADORA - A mãe Marta, meio polonesa, meio alemã, viera de uma região perto de Berlim. Casara com Antonio em segundas núpcias e já tinha dois filhos do primeiro casamento. Hary foi o caçula. Filho de família conservadora, criado de forma tradicional, com rigor alemão, não foi visto com bons olhos quando disse que queria estudar música.  "Para uma família alemã, música não era profissão. O pai queria que eu continuasse o trabalho dele. Só aceitou a música depois da minha formatura", resume Hary.  Apesar da resistência, ele me comprou um piano. Mas, ainda hoje é complicado um filho dizer para a família que quer viver de música". Hary Schweizer estudou na Escola de Música de Curitiba, a apenas 100 km. de sua cidade. Mas não foi fácil, pois trabalhava numa fábrica de azulejos enquanto estudava. Teve sorte. Os donos da fábrica, de origem suiça, apoiavam as atividades culturais e reembolsaram os gastos de Hary com o estudo de música. O fagote ele descobriu por acaso. Num dos cursos internacionais de música, que começaram a ser realizados originalmente em Curitiba, Hary viu chegar um músico com uma maletinha, tirar várias partes do instrumento, montá-lo e tocar alguns trechos: "Isso me bastou. Decidi ali mesmo que era aquele o instrumento que iria tocar".

DESCOBERTA POR ACASO - Na escola ele estudava piano - "por falta de opção. Nunca fui exímio"- e, também por acaso, descobriu um fagote velho, escondido numa gaveta , que ninguém mais usava. O professor de oboé foi improvisado como professor de fagote, já que a emissão do som dos dois instrumentos se faz de maneira semelhante. Schweizer foi terminar os estudos de fagote na Alemanha. Também não foi fácil. Como não tinha bolsa, teve que trabalhar para conseguir se manter em Munique. Mais uma vez, sorte dele.  "Trabalhei numa loja de discos de música clássica. Aprendi mais lá do que na escola. Como precisava indicar para os fregueses qual a melhor gravação de uma determinada obra, tinha que conhecer todas". Na loja, Schweizer reconheceu os membros do quarteto de cordas da UnB, que eram clientes. "Eu os atendi em português e, depois de uma boa cerveja, recebi o convite para ensinar em Brasília", lembra Hary. "Nessa época, pensava em ficar na Alemanha, mas aceitei o convite e nunca me arrependi". Na mesma loja em Munique, trabalhava Sofia, uma alemã de olhos azuis e imensa simpatia, que logo depois de tornaria sua mulher. A família veio para o Brasil em 1977. Hary tornou-se professor da UnB. "Não penso em voltar para a Alemanha de jeito nenhum", diz com convicção e alegria Sofia. Ela trabalha em casa e tem como hobby cantar em coral. Chegou a se apresentar em Nova York com o Coro Comunitário. O casal tem quatro filhos, Matias, de 19 anos, Tomás, de 17, Cristina, de 15, e Ana Carolina, de 12. Hoje moram numa chácara no Varjão do Torto, num lugar cheio de mangueiras, goiabeiras, um canavial e muita paz. Um pequeno paraíso a poucos minutos do Plano Piloto. Hary começou desmontando o próprio instrumento e fazendo medições, para construir o fagote pela primeira vez. Foi uma busca pessoal: "Até envaidece um pouco ter construído o instrumento sem ninguém ensinar". Para conseguir seu intento, Schweizer teve que aprender a trabalhar com madeiras, metais, vernizes, furadeiras, tornos, pistolas de tinta. Isso tudo numa oficina que ele mesmo fez, no espaço, que originalmente fora um canil e depois servira como salão de cabeleireiro para Sofia. E aí conseguiu um estágio de manutenção de fagotes na fábrica Püchner, uma das melhores da Alemanha. De tanto observar o processo de criação, acabou aprendendo. "Entre o como se faz e o fazer, o caminho é grande. O resto fui criando, improvisando", conta ele, como se a façanha fosse pouca coisa.

PACIÊNCIA E CAIPIRINHA - Para construí-lo é preciso muita paciência e, segundo Hary, ö construtor não pode estar cansado ou chateado. Para mim não é uma obrigação, mas um prazer". Ele teve alguns momentos de desânimo, mas nada que uma caipirinha não resolvesse. Da esposa Sofia - que o chama de 'homem-bombril' (mil e uma utilidades) - Hary tem "um imenso apoio moral e um cafezinho quente de vez em quando". Aposentado da Unb no ano passado, Hary hoje tem tempo livre para fazer o que realmente gosta. Mas não consegue disfarçar a mágoa da instituição: "Não me deram apoio financeiro ou ajuda para importação de equipamentos, mas quando o instrumento ficou pronto, a UnB cobrou para si os louros da construção do primeiro fagote brasileiro". Dos 15 instrumentos feitos por Hary até hoje, 10 estão nas mãos de músicos por todo o Brasil. O último que fez, Schweizer o usa nas suas apresentações na Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional, da qual é membro fundador.

Newton Araújo Jr.

voltar ao índice de publicações        voltar ao início