Considerações da ergonomia aplicada ao fazer musical
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Um
texto de ergonomia dedicado a músicos, àqueles que optaram por fazer
da música parte integrante de sua vida profissional, permite abordar
dimensões que usualmente fogem ao senso comum. Afinal, ser músico -
usualmente uma profissão auto-elegida, pode ser extremamente prazeroso.
Precisamos considerar, contudo, que desde o período de formação até
a inclusão e permanência no mercado de trabalho as demandas são inúmeras,
exemplificadas nas muitas horas de estudo individual para atingir domínio
técnico da interface instrumental, pelo intrincado código a ser
entendido, decifrado e transformado em gestos que se traduzem em sons,
pelas pesquisas de estilo e de interpretação, pelo gerenciamento de
aspectos coletivos e organizacionais seja no recital de formatura, seja
no desempenho em uma banda ou orquestra sinfônica. Por outro lado, as
relações interpessoais entre pares e chefia trazem à baila confrontos
de poder, controle e competição acirrada face à exigüidade do
mercado. Estas questões são apenas o início da grande lista com a
qual a realidade de trabalho nos confronta, incidindo direta e
indiretamente sobre a nossa saúde. A
dimensão física do trabalho, facilmente observável, se revela por
meio das posturas assumidas quando da execução do instrumento, do
esforço muscular exigido incluindo a sustentação estática dos
instrumentos, as torções de tronco, os ângulos das articulações, a
posição de punhos e cotovelos. E nisto somos comparados a atletas em vários
textos de saúde, com a diferença de que nos falta a assistência
necessária por meio do “treinador”, do preparador físico, do
fisioterapeuta e massagista...E a responsabilidade ao surgir qualquer
tipo de dor, de desconforto ou lesão recai geralmente sobre o indivíduo,
relegando o contexto em que o processo de adoecimento do músico ocorre. É
notória a cultura da dor, a noção de que ela faz parte do
desenvolvimento de todo músico, de que é preciso dedicar-se além dos
limites para atingir a perfeição, assim como a cultura do silêncio
que a ela se segue, por temor de ser afastado de seu sustento ou de ser
estigmatizado. Em
contrapartida, procuram-se estratégias mais eficazes de estudo que
possibilitem uma aprendizagem mais segura, diminuindo a ocorrência de
sobreuso da musculatura e de quadros inflamatórios (as famosas “ites”,
como tendinites, tenossinovites, epicondilites...) O
período de formação e a orientação recebida são fundamentais para
a adoção de práticas preventivas que poderão ajudar o músico em
toda a sua carreira. Na falta de conhecimento mais específico, é uma
tendência reproduzir modelos conhecidos. Assim, o professor pode
repassar ao seu aluno o que funcionou em seu próprio aprendizado sem
considerar as diferenças acentuadas de medidas (antropometria) ou as
características psicofísicas dos seus orientandos. Por outro lado, se
a visão romantizada sobre música e sobre o “talento” permanece,
provavelmente faltará a preparação física necessária para a
atividade. E a simples indicação de que natação é um bom esporte não
resolverá os problemas posturais e as conseqüências que poderão se
avizinhar. Faz-se
necessário conhecer o fazer musical como um todo para compreender que a
alta carga cognitiva presente nas micro-decisões constantes, nas regulações
que acontecem por meio dos canais perceptivos, no uso de atenção e da
memória também podem se refletir em tensões que perturbam a execução
ao instrumento. O uso de processos cognitivos complexos em função das
características da tarefa, das pressões temporais e da variabilidade
presente na situação de trabalho dos músicos configura-se também na
capacidade de avaliação, de abstração e de antecipação para
regular o desempenho em um universo dinâmico, de interação com outros
músicos no caso das práticas em conjunto e mesmo com o público.
Face
ao exposto, como minimizar os problemas existentes e preparar realmente
nossos alunos para o mundo do trabalho? A
ergonomia, jovem ciência que estuda as relações homem-trabalho de
forma contextualizada, tem por eixos o bem-estar, a segurança e a
produtividade, e pode colaborar para o entendimento destas questões. A
mensuração e adequação do espaço e posto de trabalho, o
levantamento de riscos ocupacionais, a compreensão da organização de
trabalho, da carga cognitiva presente e da necessidade de negociação
para realização de agendas e pausas durante a jornada de trabalho, a
introdução de estratégias preventivas como ginástica laboral e adoção
de alongamentos periódicos, a realização de rodízios nas funções,
são algumas das alternativas que uma intervenção ergonômica pode vir
a propor. Evidencia-se, com isto, que a ergonomia vai além do
tratamento da dimensão física do trabalho e do mero estudo do mobiliário.
Como
bem coloca Christophe Dejours, a saúde é fruto de uma
permanente negociação na procura de condições ambientais, físicas e
mentais adequadas ao ser humano. Há limites que precisam ser
conhecidos. Alain Wisner sinaliza que as características de
determinadas atividades, entre elas a artística, não possibilitam uma
jornada de trabalho com a mesma duração das de outras profissões.
Isto sem adentrar o caso de ensaios em que a fórmula “Da Capo, Da
Capo” é proposta continuamente, sem pensar no desgaste, na fadiga e
no estresse que acarreta aos instrumentistas! Como
apresentamos brevemente, a saúde do músico está vinculada à maneira
como as dimensões física, cognitiva e psíquica se articulam na
atividade, no fazer real de cada um. É neste momento que a
variabilidade sempre presente nos desafia a achar saídas para impasses
como uma cadeira mal posicionada ou com a qual ficamos lutando para
manter uma boa postura ao instrumento, com o pouco espaço entre
instrumentos que estão decibéis à frente dos nossos, incidindo
diretamente sobre nossos ouvidos enquanto tentamos afinar em conjunto! A
tão falada solução de compromisso, a solução viável que apregoa a
ergonomia, precisa ser negociada constantemente sob pena de se ter músicos
promissores adoecidos e afastados precocemente de suas carreiras. Há
que mudar o olhar sobre o nosso próprio fazer, assumir papel ativo e
buscar conhecimentos tanto na academia quanto na realidade riquíssima
dos que estão na labuta de fazer desta arte performática uma expressão
sensível do ser humano. |
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