Considerações da ergonomia aplicada ao fazer musical

Cristina Porto Costa

 

Um texto de ergonomia dedicado a músicos, àqueles que optaram por fazer da música parte integrante de sua vida profissional, permite abordar dimensões que usualmente fogem ao senso comum. Afinal, ser músico - usualmente uma profissão auto-elegida, pode ser extremamente prazeroso. Precisamos considerar, contudo, que desde o período de formação até a inclusão e permanência no mercado de trabalho as demandas são inúmeras, exemplificadas nas muitas horas de estudo individual para atingir domínio técnico da interface instrumental, pelo intrincado código a ser entendido, decifrado e transformado em gestos que se traduzem em sons, pelas pesquisas de estilo e de interpretação, pelo gerenciamento de aspectos coletivos e organizacionais seja no recital de formatura, seja no desempenho em uma banda ou orquestra sinfônica. Por outro lado, as relações interpessoais entre pares e chefia trazem à baila confrontos de poder, controle e competição acirrada face à exigüidade do mercado. Estas questões são apenas o início da grande lista com a qual a realidade de trabalho nos confronta, incidindo direta e indiretamente sobre a nossa saúde.

A dimensão física do trabalho, facilmente observável, se revela por meio das posturas assumidas quando da execução do instrumento, do esforço muscular exigido incluindo a sustentação estática dos instrumentos, as torções de tronco, os ângulos das articulações, a posição de punhos e cotovelos. E nisto somos comparados a atletas em vários textos de saúde, com a diferença de que nos falta a assistência necessária por meio do “treinador”, do preparador físico, do fisioterapeuta e massagista...E a responsabilidade ao surgir qualquer tipo de dor, de desconforto ou lesão recai geralmente sobre o indivíduo, relegando o contexto em que o processo de adoecimento do músico ocorre.

É notória a cultura da dor, a noção de que ela faz parte do desenvolvimento de todo músico, de que é preciso dedicar-se além dos limites para atingir a perfeição, assim como a cultura do silêncio que a ela se segue, por temor de ser afastado de seu sustento ou de ser estigmatizado.

Em contrapartida, procuram-se estratégias mais eficazes de estudo que possibilitem uma aprendizagem mais segura, diminuindo a ocorrência de sobreuso da musculatura e de quadros inflamatórios (as famosas “ites”, como tendinites, tenossinovites, epicondilites...)

O período de formação e a orientação recebida são fundamentais para a adoção de práticas preventivas que poderão ajudar o músico em toda a sua carreira. Na falta de conhecimento mais específico, é uma tendência reproduzir modelos conhecidos. Assim, o professor pode repassar ao seu aluno o que funcionou em seu próprio aprendizado sem considerar as diferenças acentuadas de medidas (antropometria) ou as características psicofísicas dos seus orientandos. Por outro lado, se a visão romantizada sobre música e sobre o “talento” permanece, provavelmente faltará a preparação física necessária para a atividade. E a simples indicação de que natação é um bom esporte não resolverá os problemas posturais e as conseqüências que poderão se avizinhar.

Faz-se necessário conhecer o fazer musical como um todo para compreender que a alta carga cognitiva presente nas micro-decisões constantes, nas regulações que acontecem por meio dos canais perceptivos, no uso de atenção e da memória também podem se refletir em tensões que perturbam a execução ao instrumento. O uso de processos cognitivos complexos em função das características da tarefa, das pressões temporais e da variabilidade presente na situação de trabalho dos músicos configura-se também na capacidade de avaliação, de abstração e de antecipação para regular o desempenho em um universo dinâmico, de interação com outros músicos no caso das práticas em conjunto e mesmo com o público. 

Face ao exposto, como minimizar os problemas existentes e preparar realmente nossos alunos para o mundo do trabalho?

A ergonomia, jovem ciência que estuda as relações homem-trabalho de forma contextualizada, tem por eixos o bem-estar, a segurança e a produtividade, e pode colaborar para o entendimento destas questões. A mensuração e adequação do espaço e posto de trabalho, o levantamento de riscos ocupacionais, a compreensão da organização de trabalho, da carga cognitiva presente e da necessidade de negociação para realização de agendas e pausas durante a jornada de trabalho, a introdução de estratégias preventivas como ginástica laboral e adoção de alongamentos periódicos, a realização de rodízios nas funções, são algumas das alternativas que uma intervenção ergonômica pode vir a propor. Evidencia-se, com isto, que a ergonomia vai além do tratamento da dimensão física do trabalho e do mero estudo do mobiliário.

Como bem coloca Christophe Dejours, a saúde é fruto de uma permanente negociação na procura de condições ambientais, físicas e mentais adequadas ao ser humano. Há limites que precisam ser conhecidos. Alain Wisner sinaliza que as características de determinadas atividades, entre elas a artística, não possibilitam uma jornada de trabalho com a mesma duração das de outras profissões. Isto sem adentrar o caso de ensaios em que a fórmula “Da Capo, Da Capo” é proposta continuamente, sem pensar no desgaste, na fadiga e no estresse que acarreta aos instrumentistas!

Como apresentamos brevemente, a saúde do músico está vinculada à maneira como as dimensões física, cognitiva e psíquica se articulam na atividade, no fazer real de cada um. É neste momento que a variabilidade sempre presente nos desafia a achar saídas para impasses como uma cadeira mal posicionada ou com a qual ficamos lutando para manter uma boa postura ao instrumento, com o pouco espaço entre instrumentos que estão decibéis à frente dos nossos, incidindo diretamente sobre nossos ouvidos enquanto tentamos afinar em conjunto! A tão falada solução de compromisso, a solução viável que apregoa a ergonomia, precisa ser negociada constantemente sob pena de se ter músicos promissores adoecidos e afastados precocemente de suas carreiras. Há que mudar o olhar sobre o nosso próprio fazer, assumir papel ativo e buscar conhecimentos tanto na academia quanto na realidade riquíssima dos que estão na labuta de fazer desta arte performática uma expressão sensível do ser humano.

Cristina Porto Costa é mestre em Psicologia Social e do Trabalho pela Universidade de Brasília (UnB), fagotista e professora do CEP/Escola de Música de Brasília, onde desenvolve o módulo Ergonomia Aplicada às Práticas Musicais para músicos em formação. Tem artigos e relatos de pesquisa publicados pela ABERGO, ABEM, revista Per Musi(UFMG) e revista Hodie (UFG).

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