UMA PEQUENA HISTORIA DO FAGOTE NO BRASIL

Aloysio Fagerlande

    É na Bahia, primeira capital do país, onde encontramos a primeira referência ao fagote na História da Música Brasileira - Frei Agostinho de Santa Maria, prior beneditino e natural da cidade, tocava "os instrumentos de baixão e fagote... com perfeição" (Santos, 1939), tendo falecido em 1709. Portanto é um músico brasileiro, nascido em Salvador, fagotista, no século XVII.
    Encontramos também citações de cronistas como Simão de Vasconcelos que falam de índios tocando fagotes em cerimônias, segundo Luis Heitor Correa de Azevedo (1956).
    Com a posterior mudança do centro hegemônico da economia brasileira para Minas Gerais, acontece um florescimento sem igual no campo das artes nesta região; este se manifesta sobretudo na arte sacra, com a construção de igrejas e seus desdobramentos - pintura, escultura e música. Dentro de período colonial da formação social brasileira, este é o conjunto de manifestações artísticas mais estudado até agora, com um razoável acervo identificado e catalogado.
    Segundo Maria da Conceição Rezende, "nas Festas Reais (referindo-se aos 'Depositórios do Infante'), promovidas pelo Governador Geral...a 13 de maio de 1786...o empresário Antonio Freire dos Santos se comprometeu a apresentar uma orquestra...sob a regência do maestro Ignácio Parreira Neves...na posse do Visconde de Barbacena houve o mesmo número mas como uma variante: 2 oboés, 1 fagote e 2 trompas... Em 1795, na festividade pelo nascimento do Príncipe D. Antonio: 2 coros, 14 rabecas, 4 rabecões, 2 oboés, 2 fagotes, 2 clarins, 2 trompas, 2 flautas e timbale, com um total de 37 músicos" (Rezende, 1974).
    Ela aborda também a instrumentação utilizada na segunda metade do século XVIII por grande parte dos compositores mineiros: violinos (rabecas ou rebecas), violas (violetas), flautas, oboés, fagotes, trompas (corni), clarins (trompetes), timbales (percussão) (Rezende, 1989).
    É mencionado Francisco Gomes da Rocha, fagotista, timbaleiro do Regimento de Dragões, onde foi colega de Tiradentes, e que também foi regente nas irmandades mais importantes de Vila Rica, tendo em 1800 substituído José Joaquim Emérico Lobo de Mesquita na Matriz do Pilar (Rezende, 1989)
    Um fato bastante relevante nos chamou a atenção no catálogo de obras organizado pelo Prof. Elmer C. Barbosa: a quase total inexistência de partes de fagote nas peças por ele pesquisadas. Apenas o "Credo a 5 / com violinos, violas, flautas, clarinetas, trompas e basso", de autoria de Antonio dos Sanctos Ribeiro, com cópia de Francisco José das Chagas, em 1841, contém uma parte de fagote ("basson") e que simplesmente reproduz o baixo instrumental.
    Esta utilização do fagote apenas como dobramento dos instrumentos de cordas graves era prática usual na orquestração dos períodos barroco, pré-clássico e até mesmo início do clássico - assim como os outros instrumentos da família das madeiras, como a flauta ou o oboé dobrando os violinos.
    Em Minas Gerais, dentre um universo de 91 compositores catalogados (Barbosa, 1979), apenas uma obra com parte de fagote é encontrada. Ora, se era prática comum na música de concerto européia que serviu de modelo e escola para esta música aqui composta e praticada, o uso do fagote tocando a mesma parte dos baixos, será que a mesma prática não era adotada em Minas, e que possíveis partes separadas tenham sido extraviadas, ou mesmo que jamais tenham existido, já que os fagotistas poderiam tocar pelas partes dos baixos? É uma indagação pertinente, já que encontramos uma série de referências ao fagote no livro da Prof. Maria da Conceição Rezende (1989) mas quase nenhuma parte em separado era destinada no catálogo do Prof. C. Barbosa.
    Com o declínio da atividade mineradora tem início um processo de decadência irreversível nas cidades mineiras, com as atividades artísticas sofrendo as conseqüências. Não há uma renovação necessária na geração de músicos, que em grande parte emigram no início do século XIX para o Rio de Janeiro, que passava por uma fase econômica, social e cultural importante com a chegada da Família Real portuguesa em 1808.
    Abordaremos agora somente o Rio de Janeiro no século XIX, devido ao papel hegemônico que coube à capital quando da chegada da Corte Portuguesa em 1808, e que então centralizou a maior parte da produção musical brasileira de concerto da época. É claro que isto não implica na falta de atividades musicais de concerto em outros estados, trata-se apenas de uma opção metodológica tendo em vista a centralização do poder na capital e por conseqüência uma maior bibliografia disponível.
    A música de concerto praticada no Rio de Janeiro pode ter como marca divisória a chegada da Corte Portuguesa em 1808, principalmente por ter provocado mudanças no modo de olhar o que ali já se fazia anteriormente, conforme explicado no parágrafo anterior.
    A principal referência inicial é a Fazenda de Santa Cruz (situada no bairro do mesmo nome, no Rio de Janeiro), onde se dá o "apogeu do ensino musical da Companhia de Jesus no Brasil", segundo Luis Heitor C. de Azevedo (1956), mas já com a educação de negros escravos e não mais índios. Ainda não sabemos muito bem como funcionou, ou mesmo se existiu este "Conservatório" citado pelos viajantes da época, e acreditamos ser um assunto merecedor de maior aprofundamento. Sabemos que esta Fazenda passa ao domínio da Coroa Portuguesa com a expulsão dos jesuítas por ato do Marquês de Pombal em 1759.
    As próximas citações que encontramos foram todas a partir da chegada de D. João, futuro Príncipe Regente - "A primeira vez que D. João e toda Corte ouviram missa conventual na Igreja de Loyola, em Santa Cruz, ficaram arrebatados de entusiasmo e admiração pela perfeição com que a música vocal e instrumental era executado pelos negros..."! (Cernichiaro, 1926). Joaquim de Vasconcelos diz que D. João VI, para apresentar uma idéia nova...lembrou-se de reformar o Conservatório Africano e estabeleceu no seu palácio...uma escola de composição musical, de canto e de vários instrumentos" (Vasconcelos, 1870) e que trata de organizar a Capela Real, contratando os melhores cantores e instrumentistas no Rio de Janeiro. A. Balbi, geógrafo veneziano em viagem pelo Brasil, diz quer músicos "chegaram a tocar instrumentos e cantar de modo verdadeiramente admirável...lamentamos não poder dar os nomes do primeiro violino, do primeiro fagote... de São Cristóvão" (Cernichiaro, 1926).
    Joaquim de Vasconcelos menciona o fato que esta reorganização das estruturas musicais oficias no Rio de Janeiro não teriam dado certo "porque não havia instrumentistas bons". Com a chegada de Marcos Portugal em 1810/1811, vários cantores e instrumentistas que o acompanharam foram colocados na orquestra da Capela Real, melhorando o nível desta. Mas todas estas informações são passíveis de erro, pois tanto Balbi comete incoerências em descrições, como certos julgamentos subjetivos por parte de J. Vasconcelos podem estar comprometidos por um forte sentimento anti-brasileiro, bastante comum em Portugal quando da edição da obra consultada.
    Encontramos então os primeiros nomes de fagotistas atuantes no Rio de Janeiro, citados por Ayres de Andrade (1967): Alexandre José Baret, músico francês que provavelmente chegou ao Brasil entre 1805 e 1810 e pertenceu à Câmara Real; Leonardo da Mota aparece como música da Capela Real em 1816, e a partir de 1822 seu filho Francisco da Mota passa a integrar a Capela Real.
    Sobre a Capela Real e seus músicos vamos encontrar informações no Catálogo Temático - José Maurício Nunes Garcia de Cleofe Person de Mattos: "O instrumental disponível nos tempos da velha Catedral pode ser avaliado através das partituras mauricianas da época: cordas (às vezes sem viola), flauta, clarinetes, trompas e eventualmente os fagotes" (1986). É mencionado também o extraordinário crescimento da orquestra com os músicos que chegam com Marcos Portugal de Lisboa, inclusive com a ampliação do repertório habitual. O conjunto instrumental que então se forma na Capela Real será classificado por José Maurício como "orquestra imensa e prodigiosa" (Mattos, 1986).
    Outra observação da Prof. Cleofe Person de Mattos reforça nossa hipótese inicial em Minas Gerais, sobre a utilização do fagote como instrumento de reforço do baixo - "O aparecimento de partes de violoncelo, contrabaixo e fagote, além das vocais, não confirma acompanhamento de orquestra, dado o hábito de José Maurício reforçar com esses instrumentos não só as obras para vozes e órgão, como as de coro a capela" (Mattos, 1986). Mesmo sendo uma observação para a obra do Pe. José Maurício, no Rio de Janeiro, podemos estendê-la também para Minas, já que tanto uma região como a outra tiveram o mesmo modelo pré-clássico europeu como base.
    Tanto no chamado "Barroco Mineiro" como no Rio de Janeiro sede da Corte Portuguesa não encontramos referência alguma a obras com fagote solista; apenas duas merecem destaque, mas com fagote atuando dentro da orquestra, e não como instrumento solista.
    A primeira obra digna de menção é o "Te Deum Laudamus", do Pe. José Maurício Nunes Garcia, datado de 1811. Existem duas versões da obra, esta e outra bastante posterior, provavelmente re-orquestrada por outra pessoa; na versão original de 1811 encontramos um importante solo de fagote na Introdução do Te Ergo, para soprano, e mesmo quando da entrada da voz solista, aparece o segundo fagote, que juntamente com o primeiro fazem a harmonia em terças, em cima de uma linha de baixo. Na re-orquestração posterior este solo foi confiado à flauta, e os dois fagotes retirados da harmonização.
    A segunda data de 1814: trata-se da Abertura em Sib M para grande orquestra, de autoria de Bernardo de Sousa Queiroz cujas partes manuscritas originais encontram-se no acervo da Biblioteca Alberto Nepomuceno da Escola de Música da UFRJ; a parte do fagote exige do intérprete um certo nível de execução do instrumento, e podemos concluir que somente um bom fagotista teria sido capaz de tocá-lo dignamente.
    Em 1817 chega ao Rio de Janeiro uma banda de música integrando a comitiva de D. Leopoldina, futura Imperatriz, tendo como mestre Eduardo Neuparth (alguns pesquisadores afirmam ser a banda alemã ou vienense), como Luis Norton (Norton, 1938), mas pela observação de alguns nomes apresentados por Ayres Andrade (Andrade, 1967), como João Vieira, Antonio José Valcinete, José Romano, juntamente com Leopold Schmotz e Francisco Roth, acreditamos ser esta banda sido composta por instrumentistas tanto austríacos como portugueses - a não ser que Andrade tivesse aportuguesado alguns nomes germânicos. A lista com seus nomes não especifica instrumentos, mas é bastante provável que ao menos 1 fagotista tenha vindo entre seus 15 integrante, já que a formação tradicional de bandas militares nesta época em Portugal continha ao menos 1 fagote (Sinzig, 1959).
     É uma hipótese que levantamos, já que os Divertimenti compostos pelo Pe. José Maurício Nunes Garcia para esta banda se encontram extraviados, e uma gravura da época ilustrando a banda no Catálogo Temático citado anteriormente não permite uma identificação dos instrumentos.
    Paralelamente, em 1810 acontece a abertura de um grande teatro no Rio de Janeiro, o Real Teatro São João, com temporadas líricas até 1824. Nele são encenadas pela primeira vez no Rio de Janeiro "O Barbeiro de Sevilha" de Rossini e "A Flauta Mágica" de Mozart. É importante notarmos que tanto uma como outra tem partes importantes para o primeiro fagote, exigindo um certo grau de habilidade no instrumento.   
    A partir de então temos uma série de teatros inaugurados (e fechados) com várias temporadas de óperas, e a partir de meados do século predomina a nova linha de ópera italiana, tendo como expoentes Donizetti e Bellini. Vários instrumentistas chegavam especialmente contratados para cada nova casa que se abria, como em 1849, quando chegam vários músicos italianos. Provavelmente poderemos encontrar maiores referências destas chegadas de músicos estrangeiros no Arquivo Nacional, possivelmente até com a relação de seus instrumentos.
    É sabido também que o Imperador D.Pedro I era um músico diletante, e que tocava alguns instrumentos, dentre os quais o fagote. Por muito tempo se falou em um suposto concerto para fagote escrito por D. Pedro, informação que me foi desmentida pelo Prof. José Maria Neves, em comunicação oral.
    No início do século XX o Rio de Janeiro, por ser a capital federal, funcionava como uma vitrine para o resto do país, e uma parte significativa de compositores, estudiosos e instrumentistas de nossa música de concerto por aqui passaram, estudaram e mesmo permaneceram - temos os exemplos de Francisco Mignone, Cláudio Santoro e Mário de Andrade entre outros.
    Podemos afirmar também que a história da música brasileira de concerto no Rio de Janeiro passava necessariamente pelo antigo Conservatório Nacional, depois Instituto de Música e agora Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, devido à grande centralização do ensino de música na antiga capital federal.
    Encontramos vários registros de concertos, audições de música de câmara com participação de fagotistas no antigo Instituto de Música, principalmente na década de 20 - Raymundo da Silva, Camillo de Andrade, Assis Republicano (que participou da primeira audição do Choros 7, de Heitor Villa-Lobos, em 1925).
    Aparece então a referência à provável primeira obra escrita no Brasil para fagote solista; na década de 30 o francês E. Dutro, integrante da Orquestra do Teatro Municipal, tocou em primeira audição no Teatro Municipal a "Ciranda das Sete Notas" de Villa-Lobos, sob a regência do compositor.
    Compositores como Francisco Braga, com a "Cantilena Nupcial" para fagote e quinteto de cordas, de 1944; Assis Republicano, com um "Concerto para fagote e orquestra" (manuscrito extraviado), Luciano Gallet, com a "Suite para piano e quinteto de sopros", Lorenzo Fernandez, com Duo, Trio e Quinteto de Sopros, também souberam valorizar o instrumento, neste período entre 1920 e 1950.
    Mas o grande expoente na utilização do fagote na música brasileira de concerto na primeira metade do século XX foi sem dúvida alguma Heitor Villa-Lobos, principalmente em sua música de câmara. Neste terreno ele desenvolve sua imaginação fecunda de temas nacionais com uma forma bastante semelhante à da vanguarda européia contemporânea. Sua música de câmara para instrumentos de sopro e, em particular a que inclui o fagote, merece um estudo à parte.
    A partir da segunda metade do século XX, a identificação das obras se torna mais fácil devido às comunicações orais do Prof. Noël Devos, a quem grande parte das obras escritas para fagote a partir desta época no Brasil foi dedicada, e que apresenta Francisco Mignone com destaque absoluto pelo conjunto de sua obra para fagote.

ver relação de obras com fagote de Francisco Mignone e Heitor Villa-Lobos

Bibliografia
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AZEVEDO, Luis Heitor de, 150 Anos de Música no Brasil - 1800-1950, RJ, Livraria José Olympio, 1956
BARBOSA, Elmer C., O Ciclo do Ouro - O Tempo e a Música no Barroco Católico, RJ, PUC, MEC-Funarte (xerox), 1979
CERNICHIARO, Vicenzo, Storia Della Musica nel Brasile, Milano, 1926
LANGWILL, Lyndsey, The Bassoon and Contrabassoon, London, E. Benn, 1986
MATTOS, Cleophe Person de., Catálogo Temático- José Maurício Nunes Garcia, RJ, 1986
NORTON, Luis, A Corte de Portugal no Brasil, SP, Cia. Ed. Nacional, 1938
REZENDE, Maria da Conceição, A Música na história de Minas Colonial, BH, Itatiaia, 1989
RIPPER, João G., Música Brasileira para Orquestra - Catálogo Geral, RJ, Funarte, 1988
SANTOS, Iza Queiroz, Origem e Evolução da Música em Portugal e sua Influência no Brasil, RJ, Imprensa Nacional, 1939
VASCONCELOS, Joaquim, Os Músicos Portugueses, vol.2 Imprensa Portuguesa, 1870

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