O Fagote
...E tomando do fagote
abraçou-o enternecido.
Fez da boca na palheta
úmido ósculo atrevido
Mirando o largo decote da moçoila distraída
A sua frente entretida...
(ANÔNIMO)
Pergunto-me, às vezes, por que alguém
resolve aprender a tocar fagote.
Ouvindo um concerto de Mozart ou Weber,
de beleza incomparável, me compunge saber que existe seres humanos
especiais que desejaram um dia tocar fagote. Ao mesmo tempo considero um
mistério que desencadeou tal anseio. Quem sabe, se a família, sendo de
músicos, lhe tenha induzido a procurar o fagote como instrumento ideal
para o desenvolvimento de suas aptidões artísticas? Quem sabe um
desgosto amoroso? Quem sabe um insopitável desejo romântico ou uma
rebeldia extravagante contra o status quo? Quem sabe o que se esconde na
alma de um fagotista?
Não existe, de minha parte, nenhuma
discriminação quanto ao fagote, mesmo por que, me dá enorme prazer
ouvir o seu som grave, jocoso, romântico e carinhoso, no entanto, o que
me deixa curioso é saber quais as razões que levam alguém a querer
tocar este instrumento.
Quando dirigia programas de música
erudita na televisão e chegava um fagotista, eu o ficava observando,
desde o momento em que chegava ao estúdio até o instante que começava
a tocar; tudo me fascinava (vai ver o fagote é minha frustração
musical). O cuidado como abre o estojo onde está o
instrumento é ritualizado. Os fechos estalam. No bojo um veludo grená
embrulha o tubo cereja, com suas teclas metálicas reluzentes. O carinho é essencial. Ele esfrega a
manta de tecido no cilindro com afetuosidade limpando-o de resíduos
imperceptíveis aos olhos dos leigos e não privilegiados. A montagem é delicada. O ajuste e o
umedecer das duas palhetas é sensual. Depois o toque sem som nas
chaves; um sopro silencioso. O fagote fica imponente na sua
verticalidade. Eis que os primeiros sons vindos das profundezas do tubo
de madeira ressoam na sala. Uma escala alegre e logo em seguida um
lamento grave de melancolia; subitamente é quase uma gargalhada de
Ciclope ou um espreguiçar de ciprestes. Pensamos então que seja esta a razão;
ao ouvir pela primeira vez estas sonoridades mágicas, o fagotista,
agora preparando-se para executar um solo ou integrar-se ao quarteto,
ficou seduzido e apaixonado.
Minha estranheza também poderia recair
sobre o esguio oboé ou o recurvado clarone, mas, estes dois têm
"geneticamente", raízes conhecidas, um com o clarinete e o
outro com o saxofone.
Ouvi esta semana um quarteto primoroso de
chorinhos brasileiros que contava em sua formação com o nobre fagote.
Este membro da família real de música, tão integrado ao grupo, me fez
pensar que Pixinguinha bem poderia ter tocado fagote. Lembro agora, que
o som do saxofone do "Pixinga" tinha muito dos sons do fagote.
É por aí.
Pinxinguinha poderia ter escolhido este
instrumento como o seu preferido para sair "chorando" suas
obras primas da música popular brasileira. Se assim fora eu não
estaria, agora, buscando justificativas como surgem os fagotistas.
São elocubrações como estas que nos
levam a buscar a raiz dos sonhos, desejos e escolhas do ser humano.
Tanto na música quanto em outras atividades, surgem sempre os que
exercem misteres especiais distantes dos lugares comuns. Há gente que
desde cedo deseja ser monge ou eremita nas montanhas do Himalaia.
Eu, por exemplo, que nos idos mais
antigos do Rio, ainda meninote, via fascinado, debruçado na janela da
pensão onde morava, Rua Alzira Brandão, o lixeiro passar com sua carroça
puxada por um burrico obediente e cabisbaixo. Eu não queria ser o
lixeiro, queria ser o burrico.
Quem sabe, não venha a ser isto uma
premonitória tendência subconsciente que vim a adotar como referência
para minha vida? Por vezes, considero até, aquele secreto desejo, um
pensamento atávico. Afinal, o lixeiro não tinha os atrativos que possuía
o gracioso burrico atrelado aos varais carregando estremunhado a caçamba
mal cheirosa.
Quem sabe hoje, eu não seria um
fagotista, se houvera ouvido com mais atenção o fraseado divertido
composto magistralmente para fagote por Prokofiev representando a
sisudez do avô de "O Pedro e o Lobo"?
Todas estas considerações se prendem a
uma pergunta que me fizeram nestes últimos dias.
- Quem inventou esta história de se
comer chuchu? E eu respondo:
- Isto é por que o nobre colega nunca
saboreou o "Chuchu com camarão" do Capela na Lapa ou o
recheado de moida gratinado com parmesão que Tia Julinha fazia com unção.
Portanto, são coisas
incompreensivelmente compreensíveis; fagotes e chuchus!
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