Jornal de Brasília 12/9/1993

UM MINUCIOSO FABRICANTE DE FAGOTE 

A partir de um idealismo que poderia dar em nada, ele começou a fabricar algo que não apenas ninguém ousava fazer, mas que parecia mesmo impossível praticar: a construção de fagotes - um instrumento de madeira, cheio de chaves e estranhos furos em curva. Como fazer esses furos em diferentes ângulos na madeira, como fabricar pequenas chaves para esse instrumento? O que no começo parecia uma impossibilidade é hoje, para o professor Hary Schweizer, uma realização mais do que concreta: é bastante sonora. A trajetória pessoal desse professor de fagote que também constrói o instrumento está ligada com a música de uma maneira muito especial. Seu pai veio para o Brasil junto com outros colonizadores alemães, no período das entreguerras. Teve que se virar como pôde e tocava sanfona em ocasiões festivas. Hary se interessou primeiramente pelo teclado, mas apenas como leigo. "Aos 19/20 anos alguém me levou para ouvir um concerto", conta. "Foi a primeira vez que vi uma orquestra. Imediatamente sabia o que queria fazer". Assim, o interesse pela música estreitou-se mais e um dia, por acaso, viu alguém abrindo um instrumento e tocando algumas notas. Decidiu: era aquele que queria tocar. O instrumento era exatamente o fagote. O passo seguinte foi conseguir aos poucos ter mais contato com o instrumento. A empresa onde Hary trabalhava, uma multinacional que fabricava cerâmica (Incepa), por sorte apostava no lado intelectual de seus funcionários e incentivou os estudos de fagote. Depois Hary conseguiu, a duras penas, ir para a Alemanha estudar o instrumento. Precisou pagar sua estada trabalhando numa loja de discos. "Foi um ótima formação trabalhar nessa loja, na seção de música clássica"., relembra ele. "Aprendi muita literatura musical, tive conhecimento de orquestras, intérpretes. Os clientes vinham se aconselhar sobre qual gravação era a melhor e era preciso diferenciar entre cinco gravações diferentes". A volta ao Brasil se deu através da loja de discos, que tinha o Quarteto de Brasília como cliente. Como a UnB precisava de professor de fagote, logo os contatos se concretizaram num contrato e desde 1977 Hary é professor do Departamento de Música da UnB. Montou com outros músicos um Quinteto de Sopros, que acabou depois de muito tempo. "Fizemos turnês pelo Brasil e pela América Latina e apresentávamos sempre um concerto diferente a cada duas semanas no departamento", conta Hary. Em 78 foi formada a Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional e o maestro Cláudio Santoro convidou vários músicos do departamento para ajudar na formação, entre eles o professor Hary, que até hoje é músico da orquestra. Há cerca de três anos, cansado de tentar obter instrumentos para seus alunos por vias tradicionais, Hary decidiu começar a construir, ele mesmo, fagotes. "Pelas vias burocráticas era uma impossibilidade. A importação, além de complicada, é cara", explica Hary. "Um fagote novo não sai por menos de US$ 8.000,- e ninguém está disposto a investir tanto dinheiro se não tem certeza de que é isso mesmo o que quer fazer". Entre a decisão e a realização, Hary precisou enfrentar a falta de qualquer literatura especializada ("por acaso surgiu um livro genérico sobre construção de instrumentos de madeira, mostrando os passos a serem seguidos, sem muitos detalhes") e a ausência de apoio financeiro. A única ajuda que recebeu foi do CNPq para visitar uma fábrica de fagotes na Alemanha e, da própria Alemanha, uma ajuda para sua estada. A fábrica alemã mostrou muita coisa, mas não tudo, e foi preciso aprender por conta própria. "É um trabalho de cópia no qual eu imito o que vejo no outro instrumento, mas descobri que as fábricas alemãs também usam o mesmo procedimento", conta ele.  Já fabricou quatro fagotes e tem dois em fase de acabamento. "Mas os próximos 10 que eu fizer já estão empenhados". Semanalmente ele recebe telefonemas de pessoas interessadas em conhecer o processo. Uma revista alemã especializada publicou um artigo sobre o seu trabalho e um musicólogo (também alemão) de passagem pelo Brasil, veio até Brasília para conhecer e conversar com Hary. Ninguém mais no país, talvez nem mesmo na América Latina, está fabricando fagotes. Três de seus alunos (sua turma também é motivo de orgulho: nove alunos, um número mais que considerável) tocam com fagotes que foram fabricados pelo professor. "Não tenho como fazer um instrumento excelente, que só as boas fábricas sabem fazer, mas ele é melhor que muitos instrumentos vindos da Europa e que possuem um nome conhecido", avalia Hary. "Os próximos já podem sair com um certo carimbo, mas a melhor propaganda é mesmo o instrumento, porque quando ele soa as pessoas podem se interessar por sua origem e vão chegar ao meu trabalho", define. Um trabalho que tem algo de artesanato e muito de obra de arte.

Paulo Paniago

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