Luthier, cabra macho

O ‘JT’ foi até Juazeiro do Norte ver de perto como vivem três fabricantes de instrumentos raros

GILBERTO AMENDOLA, gilberto.amendola@grupoestado.com.br

5 de dezembro de 2008

 

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O primeiro é mestre Chico, um que não é Francisco, mas José Antônio da Silva, 63 anos. Um sujeito que, antes mesmo de nascer, já habitava a imaginação de Guimarães Rosa. “A paixão nasce do gosto da pessoa”, fala, sem ninguém perguntar. Apesar da aparente simplicidade, Chico tem um ofício de nome enjoado. “Se diz luthier. Mas eu faço é instrumento musical. Zabumba, caixa, prato, pifi, surdo, tambor.”

Mestre Chico foi o protagonista da Lutheria Brasil, evento que reuniu alguns dos principais luthiers no sertão do Ceará, em Juazeiro do Norte - cidade mítica de Padre Cícero e do milagre da multiplicação do sol (como dizem por lá, em Juazeiro tem um sol para cada um). Foi nesse espírito que a reportagem do Jornal da Tarde decidiu se aventurar pela caatinga e observar, desde o comecinho, o trabalho desse luthier.

Pelo menos uma vez por mês, Chico acorda às 6h, pega sua foice e sai de bicicleta. Pedala uns 20 minutos. Chega a sair da cidade, e segue até uma área de vegetação seca, quase sem verde. Por baixo (ou melhor, ‘por alto’), uns 40ºC na cabeça. “A vida de quem é do mato não é fácil.”

Chico estaciona sua bike em uma estradinha de terra e continua a pé. Sua missão é encontrar uma árvore que sirva para um bom instrumento. “Só de olhar uma árvore já sei se ela vai servir”. Ele anda com desenvoltura e passa por espinhos, aranhas e cobras com autoridade. Além disso, ainda consegue tirar sarro do repórter: “Chora não, cabra. Chora, não.”

O sertanejo se aproxima de uma aroeira, passa a mão em seu tronco e explica que “madeira com nó não presta para fazer instrumento”. Só depois de mais de 20 minutos de caminhada, Chico acha a árvore ideal. É amor à primeira vista. Com quinze machadadas (na verdade, ‘machadadas’ é só jeito de dizer - o homem usava uma foice), derrubou a aroeira. “Vou levar esse pau mesmo”, diz. Com um pedaço considerável de tronco nas costas, Chico faz o caminho de volta. “Vai chorar, cabra?”, pergunta ao repórter.

Da caatinga, Chico vai à serralheria de um amigo - que corta o tronco em tiras finas. Depois, em casa, Chico se entrega ao trabalho braçal e poético de construir seus instrumentos. Depois de prontos, são vendidos por R$ 10 ou R$ 200. O que ele não vende, fica para o seu grupo, a Banda Cabaçal de Santo Antônio.

Rabecas de cabaças do Di Freitas

O segundo homem é Di Freitas, batizado Francisco Ferreira de Freitas, 43 anos, luthier e agitador cultural de Juazeiro. Di foi músico de orquestra em Mato Grosso e Goiás. Depois, em busca de uma vida menos estressante, procurou Juazeiro. “Aqui, conheci um cego que tocava rabeca na feira, me encantei.”

O tal cego era o último tocador de rabeca, uma espécie de violino primitivo, da região. Não fosse um insight de Di Freitas, aquela arte morreria com o ceguinho. “Eu dava aula de violino para uns garotos de 10 anos. Mas o problema é que nenhum deles tinha dinheiro para comprar o instrumento”, lembra.

No quintal da casa dele surgiu a solução. Foi olhando para um ‘pé de cabaça’, fruto típico de regiões quentes, que ele teve a idéia. “Se eu partisse a cabaça no meio, teria uma caixa de ressonância perfeita.” Dito e feito. Nasciam assim as rabecas do Di Freitas. “O bonito é que não existem duas iguais. Cada uma tem uma forma única. A forma de uma cabaça”, explica. Quer comprar uma rabeca? Difícil. “É mais fácil eu dar. Eu me apego ao instrumento. Fico com dó de vender. São como filhos”, avisa.

 

O terceiro deles não é Chico nem Francisco. Ao contrário, tem um nome difícil de se dizer em Juazeiro, Hary Schweizer, 61 anos. Músico erudito, professor universitário e construtor de fagote - instrumento de sopro pouco conhecido e tocado no Brasil. “O pessoal pergunta se é pagode. Não, é fagote”, brinca.

Schweizer é o único construtor de fagote da América Latina. Cada instrumento confeccionado por ele demora em média três meses para ficar pronto. “É quase como um filho. Exige paixão, paciência, ciência”, explica.

O  primeiro fagote ele fez em 1991 - depois de ser convencido por um amigo e tomar duas ou três caipirinhas. Hoje, Schweizer já produziu algumas dezenas deles. O último, aquele que para ele é seu melhor fagote, está ilhado em uma agência do correio de Blumenau - sendo assim, mais uma das vítimas das chuvas de Santa Catarina. “Não sei se o instrumento foi salvo. Não tenho informação. Vai ser uma pena. Ele é realmente bom.” O músico sabe da qualidade do que faz porque, antes de entregar o fagote aos clientes, testa o instrumento durante uma apresentação de orquestra.

Di Freitas, Hary Schweizer e Mestre Chico

Sobre o fagote ser um instrumento quase anônimo, Schweizer tem uma boa história. Em meados dos anos 70, quando voltava de uma longa temporada na Alemanha, o músico foi abordado por agentes da Polícia Federal no aeroporto do Rio de Janeiro. “Eles acharam que eu estava transportando uma bazuca”, conta. Para se livrar de uma prisão ou interrogatório, Schweizer teve de tocar em pleno saguão do aeroporto.

Assim, vigiados pelo olhar severo de Padre Cícero, mestre Chico, Di Freitas e Schweizer se conheceram. Embora tenham percorrido caminhos diferentes, chegaram ao mesmo ponto, a excelência na arte de construir instrumentos musicais. O trio brincou até de criar uma banda e se lançar em turnê - com a autorização de ‘padinho Ciço’, é claro.

O repórter viajou a convite da organização do Lutheria Brasil

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