NOTAS DUPLAS NO FAGOTE

JORGE GARCIA DEL VALLE MENDEZ

1. Introdução
Compositores e instrumentistas, num trabalho conjunto com os construtores de instrumentos, incentivaram ao longo da história da música o aperfeiçoamento das possibilidades musicais e técnicas dos instrumentos. A criatividade dos compositores e sua busca por novos meios de expressão conduziu instrumentistas e construtores a todo tipo de invenções que pudessem concretizar estas idéias. Por outro lado o virtuosismo dos instrumentistas e as pesquisas dos construtores serviam de motivação aos compositores, que imediatamente assumiam estes novos recursos em seu vocabulário musical.
No século XX a evolução da linguagem musical e a procura por novos sons se tornaram muito fortes, de tal maneira que os compositores, com ajuda de instrumentistas cada vez mais ultrapassaram os limites dos instrumentos. O surgimento da música concreta e eletrônica foi um fenômeno decisivo na evolução da música no século passado. As máquinas se tornaram capazes de produzir novos sons, conseqüentemente anunciaram novas relações sonoras e prepararam  nossos ouvidos para complexos sonoros não convencionais. A estética musical precisou mudar seus princípios para poder aceitar estes novos sons até então não ouvidos..
A experiência da música eletrônica fez surgir novas maneiras de execução nos instrumentos tradicionais, para possibilitar a realização dos novos horizontes sonoros. Aliás, no mundo além-Europa, estas possibilidades sonoras não eram totalmente desconhecidas: a flauta japonesa No, a australiana Didgeridoo, a flauta dupla brasileira e a clarineta da Índia são exemplos disso.
O fagote, um instrumento marcado por sua tradição orquestral, embarcou muito rapidamente nestas novas possibilidades sonoras. Este instrumento de palheta dupla, que no barroco e no classicismo era altamente conceituado como instrumento solista, na época do romantismo foi quase que totalmente esquecido. Seu reaparecimento se deu no século XX, quando compositores se entusiasmaram com as possibilidades sonoras desse instrumento, que nunca foram totalmente exploradas. A grande extensão como instrumento baixo/tenor (três oitavas e meia), a sonoridade peculiar e uma rica gama de possibilidades expressivas foram logo ampliadas pelos compositores com as novas maneiras de execução. É desta maneira que o fagote é explorado freqüentemente como instrumento solista e na música de câmara.
A nova possibilidade de execução que mais fascinou os compositores foram as notas duplas: elas possibilitaram não só uma nova sonoridade ou um novo efeito, mas também permitiram tocar acordes com o instrumento. Estes complexos sonoros tinham características que abriram novos horizontes para compositores e instrumentistas.
Um primeiro ensaio de sistematização desta nova técnica para o instrumento de sopro surgiu em 1967 com o livro "Neue Klänge für Hölzbläser" (Novos sons para os instrumentos de sopro) de Bruno BARTOLOZZI. Ali se ofereciam, com ajuda de pequenas tabelas, as posições correspondentes e as alterações de embocadura para se produzir as diversas possibilidades de notas duplas. Nos anos seguintes seguiram se os livros de Sergio PENAZZI e de Heinz RIEDELBAUCH, que se concentraram num aprofundamento desta maneira de tocar o fagote. PENAZZI procura um enriquecimento das possibilidades sonoras das notas duplas, enquanto que  RIEDELBAUCH disponibiliza  um catálogo sistemático de todas as notas duplas possíveis.
2. NOTAS DUPLAS - fundamentos físicos
O princípio básico das notas duplas é a simultaneidade de duas ou mais vibrações de diferentes freqüências, que vibram a partir de uma mesma coluna de ar. As diferentes freqüências geram ondas, cujas amplitudes/modulações são percebidas como:
a) um tipo de vibrato ou "roulement", quando as freqüências são pouco distantes da nota de origem. A  freqüência das ondas é tão pequena, que seus batimentos ainda podem ser nitidamente percebidos como um pulsar;
b) aspereza, quando as freqüências são muito diferentes. A freqüência da onda é tão acentuada, a tal ponto que os batimentos não podem mais ser percebidos individualmente.
Em ambos os casos estes componentes vibratórios irão reagir também como novas freqüências. Isto quer dizer, elas irão interferir progressivamente com a vibração original e ocasionar novas vibrações. Cada nova vibração irá ser percebida por nossos ouvidos também como uma nova altura.
O resultado forma um espectro de freqüência muito complexo, que será percebido como acorde, como batimento, como ruído ou como sujeira - dependendo da constelação das freqüências.  Quando a relação onda-freqüência entre as freqüências originais são relativamente simples, o resultado será em espectro harmônico. Quanto mais complicado e irracional se tornarem estas relações, tanto mais será destruída a periodicidade da amplitude/modulação e o som então se avizinha do ruído.
Para que se possam produzir duas ou mais notas simultâneas com um fagote, um instrumento originalmente pensado a ser um instrumento melódico, existem três métodos:
1.o sobre-soprar de notas no registro grave. Durante o soprar de um destes sons a pressão do ar e/ou a pressão dos lábios é aumentada;  imagina se o direcionamento como se fosse para a emissão de uma  nota da região aguda. Daí resultam muitos sons parciais da nota atacada e surge uma "polifonia" harmônica.
2.o sub-soprar das notas da região aguda. As notas desta região são obtidas artificialmente através da combinações de dedilhados, que exigem uma certa pressão (pressão do ar e dos lábios). Estes sons são na realidade parte de um som mais grave, que através da combinação de dedilhado são obtidos como sons próprios. Quando se toca um som dessa região sem a pressão maior (embocadura mais solta ou menos pressão da coluna de ar), portanto a imaginação deste som é direcionada para uma nota mais grave, o resultado é que se ouve a fundamental deste som e/ou as partes mais graves dele. Desta maneira formam-se com certeza muitas notas duplas de caráter ruidoso.
3.A interrupção da coluna de ar ao soprar uma nota da região grave ou média. Quando se toca uma nota dessa região e juntamente  libera-se um orifício, que deveria estar fechado para a emissão desta nota, ocorre uma interrupção da coluna de ar em algum lugar do instrumento. Esta interrupção produz um novo comprimento de onda; portanto a coluna de ar vai vibrar também com esta nova freqüência. As duas notas soantes simultaneamente  vão gerar por sua sobreposição novas freqüências, que junto com as duas primeiras formam um conjunto de notas duplas. A aspereza desta "polifonia" vai depender do grau de complexidade entre ambas as freqüências.
Apesar de tudo nem sempre a produção de notas duplas vai ser bem sucedida. Em muitos casos vai resultar apenas um som normal, cuja cor ou afinação se transformam pela alteração da pressão ou do dedilhado, mas que não significam necessariamente notas duplas. Em função da diversidade de palhetas, bocais, instrumentos, maneiras de tocar, não se pode afirmar quais dedilhados levaram a um resultado bem sucedido. Pode se ter como referência aquelas posições que na maioria dos fagotistas produzem notas duplas, e mesmo assim nunca de modo absoluto. O método mais recomendado é o trabalho direto com o fagotista, que vai executar a composição.
Obs: neste ponto do artigo, que foi publicado em ROHRBLATT Junho/2003, segue-se a descrição do programa de computador "audioSculpt", que serviu de base para a análise e classificação das 101 posições de notas duplas.
O CD com áudio e vídeo das notas duplas pode ser obtido diretamente junto ao autor do artigo:
JORGE GARCIA DEL VALLE MENDEZ
Lauensteiner Str. 14
01277 Dresden (Alemanha)
fone: 0351 / 8 03 38 57
jorgedelvalle@web.de 
O AUTOR - JORGE GARCIA DEL VALLE MENDEZ nasceu em 1966 em Bad Säckingen (Alemanha), mas cresceu na Espanha, onde cursou a Escola Superior de Música em Pamplona. Desde 1996 mora em Dresden, onde se dedicou ao fagote, composição e música eletrônica. Como fagotista desenvolve trabalho de solista e música de câmara, sobretudo com músicas contemporâneas. Suas composições vão do solo, à música de câmara, orquestral e eletrônica. Suas obras são interpretadas em salas de concerto de diversos países
Tabela de 32 dedilhados para notas duplas para fagote:

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