VALSAS PARA FAGOTE SOLO - F. MIGNONE

Fábio Zanon

 

 

O Brasil das primeiras décadas do século XX foi palco de uma conjunção inusitada de fatores que nutriram quatro talentos excepcionais, todos nascidos em anos terminados em 7: os cariocas Heitor Villa-Lobos (1887-1959) e Lorenzo Fernandez (1897-1948) e os paulistas Francisco Mignone (1897-1986) e Camargo Guarnieri (1907-1993).
A diferença de idade e de biografia teria sido suficiente para buscar um retrato mais pormenorizado da personalidade musical de cada um deles, mas tendo partido de uma educação musical de feição europeia, o interesse comum por buscar uma identidade musical brasileira e uma linguagem individual e consistente levou a historiografia a tratar este grupo com definições redutivas. Fernandez, tendo morrido relativamente jovem, é frequentemente posto de lado; numa visão ingenuamente sociológica, Villa-Lobos seria o "índio", o visionário original, de imaginação torrencial e indisciplinada; Guarnieri seria o "branco", acadêmico, complexo e amargurado; Mignone, apesar da origem italiana, o "negro", de inspiração fácil, colorida e cheia de molejo. Abundam comparações com triunviratos vienenses, russos ou franceses.
Mignone é visto como um grande profissional da escrita (Mário de Andrade escreveu em 1939 que, dentre todos os compositores que haviam passado por ele, nenhum tinha um "conhecimento mais íntimo, mais profundo e mais vasto de música" que Mignone, que estaria "naquele estágio de recompensa dos que não podem mais criar o ruim"), de trato instrumental  imaginativo e eficiente, que incorpora a graça da inflexão afro-brasileira e o estilo choroso das serestas com perfeita organicidade, mas que sofre de desinteresse em criar uma obra de maior ambição conceitual – um grande intelecto e uma musicalidade inata, mas um pouco superficial, uma espécie de Rimsky-Korsakov ou Respighi brasileiro, com um gosto incontrolável pela lírica italiana representada por Puccini.
Sem negar um fundo de verdade, Mignone é muito maior que isto. A vexatória ausência da grande maioria de suas quase mil obras de nossa vida musical – sobretudo das obras de câmara dos anos 50-60, algumas delas atonais – nos deixa uma visão parcial de sua fisionomia. Ele mostrou uma capacidade singular de autoanálise no livro A parte do anjo, de 1947, em que expõe candidamente seus conflitos: a necessidade de aceitar sua facilidade e suas influências, a consciência da tendência internacional da música para um caminho pós-tonal, sua responsabilidade como um ser social frente à cobrança para que fosse um Messias. Esses conflitos aparecem de forma velada e expressiva na sua vasta produção de valsas, na qual se ouve sua penosamente conquistada autoaceitação de forma mais dramática.
As 12 valsas de esquina para piano são a grande exceção ao desdém pela obra de Mignone. Porém ele escreveu mais de cinquenta valsas para piano, incluindo as 12 valsas-choro e as 24 valsas brasileiras, além de dezenas de valsas para formações instrumentais variadas e 12 valsas para violão, sem contar as dúzias de valsas escondidas entre suas canções e obras de maior porte. E, claro, estas 16 valsas para fagote que, na verdade, não formam um ciclo premeditado e podem ser tocadas na ordem preferida pelo intérprete.
As valsas para fagote foram inspiradas pela arte do fagotista francês radicado no Brasil desde 1952, Noel Devos, e compostas a pedido da professora Irany Leme, que organizou, em 1979, uma série de seis concertos sobre o tema da valsa. Como não havia nenhuma valsa para fagote no repertório internacional, Leme persuadiu o compositor a escrever obras para esse recital. Mignone tanto se entusiasmou com a atuação de Devos que completou, em poucos meses, 16 valsas.
Já em sua última década de vida, Mignone lançou um olhar nostálgico sobre o ambiente seresteiro da São Paulo de sua juventude, quando assinava obras populares com o pseudônimo Chico Bororó, para preservar sua identidade de compositor sério.
Será que isso resume seu impulso na criação destas valsas? O compositor escreveu: "sempre me dou uma porção de problemas técnicos por resolver. [...] Por exemplo: faço uma Valsa de esquina em três partes e pesquiso a possibilidade de ir acrescentando contrapontisticamente as melodias das partes. Será esta uma pesquisa legítima? Não! Não passa de um treinamento técnico, útil mas ineficaz, porque não atinge a essência do problema ‘valsa brasileira’." Ou seja, Mignone tinha consciência de que sua proverbial destreza técnica só faria sentido quando o problema estético de escrever uma valsa seresteira em pleno 1979 fosse confrontado.
E esse problema passa pela própria ideia da música de salão brasileira, na qual um conteúdo musical de caráter leve e forma simples, mas de grande amplitude melódica, inventividade harmônica e bruscos contrastes expressivos, conjuga-se a uma temática em que a noite, o luar, a solidão, o abandono emocional, o desgosto, a pobreza, a saudade do arrabalde, da infância e das felicidades passadas apontam para uma visão sombria de um estar-no-mundo amargo e sem propósito.

Seja como ciclo, seja individualmente, cada uma destas 16 valsas leva o fagote ao extremo de uma possibilidade:

1. APANHEI-TE MEU FAGOTINHO – Mignone parodia o estilo de valsa-turbilhão em uma homenagem ao Apanhei-te, cavaquinho de seu admirado Ernesto Nazareth. A dificuldade da obra e as passagens de velocidade em todos os registros contribuem para o efeito humorístico.

2. SEXTA VALSA BRASILEIRA – Uma das mais longas e formalmente elaboradas, esta obra tem uma irmã, composta para piano na mesma época. Um estudo comparativo das duas versões demonstra a perícia de Mignone em reconceber a obra sugerindo os diferentes planos de sonoridade e riqueza harmônica do piano, bem como o estilo de flautas e violões. Aqui ele também explora efeitos de pergunta e resposta em eco e expansão melódica ao longo dos registros.

3. MISTÉRIO (QUANTO AMEI-A!) – As longas frases ascendentes desta valsa soturna exibem a turbulenta mudança de caráter ao percorrer os diferentes registros do fagote, nos dizeres de Devos, "com grande força interior".

4. VALSA DA OUTRA ESQUINA – Num momento de autoparódia, Mignone subverte o caráter nostálgico da melodia com surpreendentes passagens cromáticas, um andamento mais acelerado e uma película de ironia na expressão.

5. AQUELA MODINHA QUE O VILLA NÃO ESCREVEU – Uma homenagem ao colega, em que o lirismo italianado de Mignone rememora fragmentos de obras de Villa-Lobos como Nhapopé. Aqui a vocalização nos três registros do fagote obtém as sonoridades mais comoventes do ciclo.

6. MACUNAÍMA, VALSA SEM CARÁTER – A alternância mercurial entre diferentes estilos de emissão acaba por gerar uma impressão de falta de firmeza de caráter, congruente com a personagem de Mário de Andrade.

7. VALSA DECLAMADA (O VIÚVO) – Uma obra da solidão, em que cada nota parece ser falada, exigindo mestria de emissão do intérprete.

8. + 1 3/4 – O virtuosismo aqui parece relembrar o caráter burlesco frequentemente atribuído ao fagote em obras do Romantismo tardio.

9. VALSA EM SI BEMOL MENOR (DOLOROSA) – A mais longa e, em vários aspectos, mais elaborada das valsas, em que a sonoridade plangente da região aguda parece fragmentar-se em confronto com as dissonâncias da região grave.

10. VALSA IMPROVISADA – As melodias que sugerem contracantos, tão caras a Nazareth, aparecem aqui na região grave, na forma de um solilóquio algo descontínuo.

11. VALSA-CHORO – Uma obra algo convencional, aparentada às valsas para violão, que dá ao fagotista uma melodia de grande plasticidade, apta a ressaltar a qualidade lírica de seu instrumento.

12. A BOA PÁSCOA PRA VOCÊ, DEVOS! – Uma obra econômica em seu material e pródiga em contrastes de expressão, com passagens em terças de considerável dificuldade.

13. VALSA QUASE MODINHEIRA (A IMPLORANTE) – As frases, quase sempre terminadas em dissonâncias não resolvidas, confirmam o caráter suplicante do título.

14. VALSA INGÊNUA – Uma obra cuja sofisticada técnica é envolta em um véu de simplicidade, uma característica de Mignone que ainda exige um estudo mais detido.

15. A ESCRAVA QUE NÃO ERA ISAURA – A referência ao texto-quase-ensaio sobre a poética moderna de Mário de Andrade revela muito do intuito de descontinuidade da música, em que métrica e forma são derramadas em seu fluxo de consciência.

16. PATTAPIADA – O flautista Mignone fala aqui por meio do fagote, parodiando a valsa ligeira Primeiro amor do grande flautista e compositor Pattapio Silva.

 Além do virtuosismo mais óbvio de passagens intricadas de grande velocidade, reminiscentes da flauta ou do acompanhamento de violão, Mignone é drástico na exploração dos extremos dos registros grave e agudo: ele exige que o intérprete encontre uma voz com todo tipo de gradação de dinâmica, de tamanho de frase ou de estilo de articulação, frequentemente saltando bruscamente de uma região a outra do instrumento. Sua partitura – escrupulosamente esmiuçada por Cury nesta gravação – é bastante detalhada nas nuances de dinâmica e imaginativa em suas indicações de expressão. Devos considera-as um "estudo sobre a técnica de emissão do sopro, que é a alma da expressão do fagote".
Esta abrangência técnica e expressiva soma-se ao fato de este ciclo ser único dentro do repertório para fagote solo. Consequentemente, estas obras entraram para o repertório internacional de fagote e hoje são solicitadas como peças obrigatórias em concursos internacionais e audições orquestrais.

 

o texto acima faz parte do encarte do CD: Fábio Cury interpreta as 16 valsas para fagote solo de Francisco Mignone

 

Fabio Zanon é reconhecido internacionalmente como um dos grandes violonistas da atualidade. Sua atividade como violonista, escritor, regente, professor e comunicador tem contribuído para uma mudança da percepção do violão na música de concerto. Estudou música com seu pai, teve entre seus mestres Antonio Guedes, Henrique Pinto, Edelton Gloeden e Michael Lewin, e teve forte influencia direta de Julian Bream, durante seus anos de estudante em Londres. Foi vencedor de dois dentre os maiores concursos internacionais de violão em 1996, o “Tarrega”, na Espanha, e o GFA, nos EUA. Foi agraciado com o Prêmio Moinho Santista em 97, Prêmio Carlos Gomes em 2005, Prêmio Bravo! em 2010 e indicado para o Grammy Latino em 2011. É Visiting Professor da Royal Academy of Music em Londres desde 2008. Já tocou nos maiores teatros e festivais e à frente de importantes orquestras em mais de 40 países.

 

 

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