1. O FAGOTE |
1.1
Características |
Com uma extensão do si b 0 ao mi 4 ou mais 12,
o naipe dos fagotes e contrafagote é o mais grave entre os sopros de
madeira. Instrumento de palheta dupla (como os da família do oboé) é feito,
no caso do fagote alemão, de uma madeira denominada ‘acer nigrum’ em latim,
‘accero’ em italiano, ‘maple’ em inglês e ‘Ahorn’ em alemão,13
denominação que dificilmente
encontra uma correspondente no idioma português, e, no caso do fagote
francês, de palissandro, grenadilha ou jacarandá-da-baía. Ele possui um
mecanismo de metal com, atualmente, no mínimo vinte e duas chaves. O tubo
cônico, dobrado em forma de U, tem um comprimento de cerca de 250 cm e é
composto por cinco partes: o tudel (no qual é colocada a palheta), a junta
de tenor, o pé, a junta de baixo e a campana.
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Com ampla extensão de pelo menos três oitavas e meia, menor
apenas do que a da clarineta, o fagote pode ser utilizado não só na região
do baixo, como instrumento base, mas também nos registros agudo e médio, em
linhas melódicas ou no acompanhamento. Os quatro registros diferem entre si
pelo uso do dedilhado, resposta dos ataques ou diferenças de timbre. O
registro grave vai do sib 0 até o fa# 1, o médio do sol 1 ao ré 3, o agudo
do mi b 3 ao si b 3 e o registro superagudo do si 3 ao mi 4 (ou mais). 14
Todos esses registros têm um timbre próprio, o que torna o fagote
adequado a diferentes atmosferas - líricas e expressivas, melancólicas,
burlescas e engraçadas ou grotescas e ameaçadoras. As claves usadas na
notação são as de fá e dó na quarta linha, e mais raramente, a clave de sol.
A variedade dinâmica do fagote é restrita, o que os fagotistas procuram
compensar com uma paleta diversificada de articulação. É especialmente
difícil a emissão em piano
de notas do registro grave. O fagote se apresenta em dois
modelos: alemão e francês, com suas particularidades sonoras e técnicas, que
serão expostas mais adiante.
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1.2 Funções |
1.2.1 Na
orquestra
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O fagote atua igualmente na orquestra, na música de câmara e
como instrumento solista, seja na frente da orquestra ou tocando sem
acompanhamento. Na orquestra, sua função varia, dependendo da época. Em
obras barrocas, ele reforça o baixo contínuo, muitas vezes alternando com o
violoncelo, o que resulta numa interessante mudança de timbre. Mais tarde, o
fagote assume a função de baixo do conjunto de sopros o qual, ao longo do
classicismo, ganha em individualidade e autonomia em relação às cordas. Nas
sinfonias de J. Haydn surgem os primeiros trechos orquestrais para fagote
solo, 15
muitas vezes dobrando os violinos.16
A maioria dos compositores
românticos emprega o fagote em solos orquestrais, com exceção, talvez, de
Bruckner, que não fez muito uso dele, enquanto G. Rossini, N.
Rimsky-Korsakov e principalmente P. I. Tchaikovsky se mostraram muito
‘generosos’ em sua utilização.O crescimento dos grupos das madeiras, de
geralmente dois para três ou quatro instrumentistas em cada, possibilitou
torná-los naipes autônomos. No caso dos fagotes, acresce que sua extensão é
ampliada nas duas direções: através do aperfeiçoamento na construção, para a
região aguda, e, através do contrafagote, para a região dos extremos graves.
O Requiem de G.
Verdi, a Symphonie
fantastique de H. Berlioz
ou Till
Eulenspiegel de R.
Strauss são exemplos do destaque do naipe como um conjunto autônomo.
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No século XX, com sua enorme variedade estilística, os
recursos virtuosísticos do fagote são explorados ao máximo. I. Stravinsky é
um dos compositores com uma preferência pelo fagote. Na Sagração da Primavera,
estreada em 1913, com seu imenso corpo orquestral, o primeiro fagote abre a
obra com um extenso e dificílimo solo na região superaguda, desafiando não
só todos os fagotistas, mas também tudo o que já havia sido escrito até
então. Já D. Shostakovitch usou muito o fagote nas suas sinfonias para
expressar atmosferas ameaçadoras e desoladas. Em obras com cores
nacionalistas, como, por exemplo, de B. Bártok e de Z. Kodály, o fagote às
vezes é utilizado como representante de um dos instrumentos de palheta dupla
tradicionalmente usados para a entoação ou o acompanhamento de cantos
folcóricos.
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1.2.2 Na
música de câmara
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Existem inúmeras formações de música camerística
exclusivamente compostas por instrumentosde sopro que, quando não escritas
para um só naipe, quase sempre incluem o fagote: trio de oboé,clarineta e
fagote (trio d’anches) ou com flauta no lugar do oboé, trio de duas
clarinetas e fagote,quarteto de madeiras (flauta, oboé, clarineta, fagote),
quinteto de sopros e outras mais, todas comseu respectivo e vasto
repertório. Em formações numerosas, como nas Serenatas e
Divertimenti
do classicismo, o fagote é empregado tanto ao
lado de instrumentos de sopro como de cordas. Uma das primeiras obras
camerísticas a explorar suas possibilidades virtuosísticas foi o Octeto em F maior op. posth.
166 de F. Schubert, de 1813, obra desafiadora, ainda mais quando
consideradas as limitações técnicas do instrumento na época. Neste século,
mais precisamente a partir da Primeira Guerra Mundial, muitos compositores
privilegiaram obras para formações de música de câmara, por elas poderem ser
realizadas com menos recursos e apresentadas em mais lugares. A História
do Soldado de I. Stravinsky faz parte desta concepção, reunindo sempre
um instrumento agudo e um grave de cada grupo orquestral: das cordas, o
violino e o contrabaixo, das madeiras, a clarineta (que tem maior extensão
do que a flauta) e o fagote, dos metais, o trompete e o trombone, além da
percussão.
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1.2.3
Enquanto solista
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Em comparação com vários outros instrumentos é relativamente
rara a possibilidade de escutarmos o fagote como instrumento solista.
Existe, porém, um repertório grande. Não é fácil estabelecer quais foram as
primeiras obras escritas para o fagote como solista, seja em obras sem
acompanhamento ou com acompanhamento de piano/baixo contínuo ou de
orquestra, pelo simples fato de ser difícil determinar o “ano de nascimento”
do fagote. Existem algumas obras da primeira metade do século XVII como, por
exemplo, a Sonata
concertante (1621) de D.
Castello ou a
Sonata sopra La Monica (1651) de P.F. Böddecker. Todavia, elas, como também a primeira peça
encontrada para fagote sem acompanhamento, a Fantasia per fagotto solo,
de Selma y Salaverde em Canzoni, fantasie e
correnti (1638) e as nove
sonatas de G. A. Bertoli (ou Bertali) em
Compositione musicale17 (1645), foram escritas para o dulzian,
precursor do fagote com somente duas chaves e extensão de dó 1 a ré 2. Por
volta de 1700, os compositores já podiam contar com um instrumento mais
expressivo e com extensão maior. Os 39 concertos para fagote18 de A. Vivaldi, dois deles inacabados, exigem um domínio técnico e
sonoro bastante avançado. Entre o gênero das sonatas, vale a pena citar as
compostas por G. Ph. Telemann (explorando efeitos de eco), Joh. Fr. Fasch,
J. E. Galliard e J. B. de Boismortier19.
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Durante o classicismo, o fagote gozou de uma certa
popularidade, o que se expressa nas centenas de concertos existentes, porém
geralmente escritos por fagotistas da época ou por compositores que hoje não
são muito tocados. É por isso que a obra de W. A. Mozart ganha importância e
fama. Entre os outros compositores significativos, na maioria das regiões da
Boêmia ou das de língua germânica, destacam-se C. Stamitz, Joh. B. Vanhal,
Joh. Chr. Bach, Joh. Chr. Vogel, Joh. A. Kozeluch, F. V. Krommer e F.
Devienne. Este último também compôs Seis Sonatas op. 24,
fato raro na época.
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Entre 1800 e 1830 foram escritos concertos que hoje fazem
parte do repertório de todos osfagotistas, o Concerto em F maior op.75
de C. M. v. Weber, o Andante e Rondo
Ungarese op. 35 (1813) do
mesmo compositor, o
Concerto em F maior (1805) de Joh. N. Hummel e outros de F. Danzi, Fr. Berwald etc.; já nas
décadas seguintes, a produção foi pequena. Em contrapartida, surgiram muitos
métodos, estudos e material didático em geral. 20
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No século vinte, a produção de obras para fagote é vasta e
bastante diversificada. Surge uma escrita especificamente francesa que
valoriza as características do modelo de fagote usado na França, movimento
que será examinado mais detalhadamente a seguir. Enquanto na primeira metade
do século, dentro e fora da França, as novas exigências para o fagotista se
limitavam ao uso do registro dos extremos agudos, as décadas seguintes foram
marcadas pela busca de novos efeitos sonoros até então desconhecidos. O
resultado desta busca foi uma gama de novas técnicas, para cujo estudo e
organização o trabalho de Bruno Bartolozzi 21 foi decisivo. Nele, o autor
trata das possibilidades de exploração dos monofônicos não empregadas na
técnica tradicional, como mudança de timbre numa mesma nota, produção de
quartos-de-tom ou microintervalos (por manipulação no orifício, adição de
chaves ao dedilhado comum ou mudança da pressão da embocadura), das
possibilidades de exploração dos multifônicos (por dedilhados especialmente
elaborados ou por mudança de embocadura para produzir harmônicos) e ainda
apresenta efeitos como glissando, frullato, vibrato anormal e tremolo, gerados com o auxílio da língua, dos
lábios, da musculatura abdominal e pelos dedos.22
Novos efeitos podem ainda ser
obtidos através do uso das chaves, do tudel sem a palheta, ou somente com a
palheta, cantando no instrumento e ainda pela inclusão de elementos
coreográficos. Entre as obras que fazem uso destes recursos estão Dialogue de Karkoschka, Collage de Bruno Bartolozzi, Chewing Basson Burger
e Perfugio de Knut Sonstevold, Monólogo de Isang Yun e Sand for Basson
de Dagfinn Koch, algumas
delas empregando o fagote junto a fitas pré-gravadas ou live electronics.
Ao lado destas obras, existem
outras num estilo neobarroco ou voltadas para o classicismo, como, por
exemplo, as
Variações sobre uma arieta de Pergolesi de Otmar Nussio.
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Como já foi mencionado, no século XX a escrita para o fagote
francês difere daquela para o fagote alemão, o que pode chegar a ponto de
tornar desinteressante a realização, no sistema alemão, de obras
originalmente compostas para o sistema francês, pois o resultado sonoro não
corresponde ao esforço técnico e físico despendidos. Já as obras escritas
para o fagote alemão podem ser executadas, sem desvantagem, pelo fagote
francês, a não ser que elas utilizem multifônicos cuja notação tenha sido
feita através de especificação dos dedilhados. Mesmo nesse caso o fagotista
do modelo francês pode procurar conseguir efeitos sonoros similares através
de dedilhados diferentes.
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12 É possível
produzir notas mais agudas usando técnicas comparáveis ao
flageolett
dos instrumentos de
cordas.
13
Hary Schweizer, em Brasília, fabrica fagotes com madeira nacional,
usando imbuia.
14
Outros autores, baseando-se em menor número ou outros critérios,
chegam a outras divisões de registro.
15
É curioso que os primeiros trechos orquestrais solo para fagote
surgem só depois do fagote ter sido usado como solista com
orquestra, como nos
Concertos
de Vivaldi.
16 Encarte do CD
Fagottisima nova (Gürzenich Fagottquintett),
texto de introdução, sem contagem de páginas. MDG
17
Segundo William Waterhouse, trata-se da primeira coleção de
sonatas para um instrumento com acompanhamento de baixo contínuo.
THE NEW GROVE, Dictionary of Music and Musicians. Edited by
Stanley Sadie. London: Macmillan 1980, vol. 2, p. 276.
18
Esse número foi superado somente pelos concertos para violino.
19
O
Concerto para Violoncelo ou Viola da Gamba ou Fagote op. 26
de Boismortier é
considerado o primeiro concerto para um instrumento solo escrito
por um compositor francês. Encarte do CD
Les bassons de
l’Operá. dQM
6995 Paris, 1998.
20
MUSIK IN GESCHICHTE UND GEGENWART (MGG). Allgemeine Enzyklopädie
der Musik. Editado por Friedrich Blume. 17 vol. Kassel 1989,
verbete ‘Fagott’, coluna 290.
21
BARTOLOZZI, Bruno.
New Sounds for
Woodwind.
London: Oxford University Press 1982.
22
Esta técnicas são ensinadas em PENAZZI, Sergio.
Metodo per
Fagotto.
Coleção Bruno Bartolozzi - Nuova tecnica per strumenti a fiato di
legno. Milano: Edizioni Suvini Zerboni (sem data).
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