obras de compositores brasileiros

para fagote solo

dissertação de mestrado, UNI-RIO, 1999

ARIANE PETRI

 

1. O FAGOTE

1.1 Características

Com uma extensão do si b 0 ao mi 4 ou mais12, o naipe dos fagotes e contrafagote é o mais grave entre os sopros de madeira. Instrumento de palheta dupla (como os da família do oboé) é feito, no caso do fagote alemão, de uma madeira denominada ‘acer nigrum’ em latim, ‘accero’ em italiano, ‘maple’ em inglês e ‘Ahorn’ em alemão,13 denominação que dificilmente encontra uma correspondente no idioma português, e, no caso do fagote francês, de palissandro, grenadilha ou jacarandá-da-baía. Ele possui um mecanismo de metal com, atualmente, no mínimo vinte e duas chaves. O tubo cônico, dobrado em forma de U, tem um comprimento de cerca de 250 cm e é composto por cinco partes: o tudel (no qual é colocada a palheta), a junta de tenor, o pé, a junta de baixo e a campana.

Com ampla extensão de pelo menos três oitavas e meia, menor apenas do que a da clarineta, o fagote pode ser utilizado não só na região do baixo, como instrumento base, mas também nos registros agudo e médio, em linhas melódicas ou no acompanhamento. Os quatro registros diferem entre si pelo uso do dedilhado, resposta dos ataques ou diferenças de timbre. O registro grave vai do sib 0 até o fa# 1, o médio do sol 1 ao ré 3, o agudo do mi b 3 ao si b 3 e o registro superagudo do si 3 ao mi 4 (ou mais).14 Todos esses registros têm um timbre próprio, o que torna o fagote adequado a diferentes atmosferas - líricas e expressivas, melancólicas, burlescas e engraçadas ou grotescas e ameaçadoras. As claves usadas na notação são as de fá e dó na quarta linha, e mais raramente, a clave de sol. A variedade dinâmica do fagote é restrita, o que os fagotistas procuram compensar com uma paleta diversificada de articulação. É especialmente difícil a emissão em piano de notas do registro grave. O fagote se apresenta em dois modelos: alemão e francês, com suas particularidades sonoras e técnicas, que serão expostas mais adiante.

1.2 Funções

1.2.1 Na orquestra

O fagote atua igualmente na orquestra, na música de câmara e como instrumento solista, seja na frente da orquestra ou tocando sem acompanhamento. Na orquestra, sua função varia, dependendo da época. Em obras barrocas, ele reforça o baixo contínuo, muitas vezes alternando com o violoncelo, o que resulta numa interessante mudança de timbre. Mais tarde, o fagote assume a função de baixo do conjunto de sopros o qual, ao longo do classicismo, ganha em individualidade e autonomia em relação às cordas. Nas sinfonias de J. Haydn surgem os primeiros trechos orquestrais para fagote solo,15 muitas vezes dobrando os violinos.16 A maioria dos compositores românticos emprega o fagote em solos orquestrais, com exceção, talvez, de Bruckner, que não fez muito uso dele, enquanto G. Rossini, N. Rimsky-Korsakov e principalmente P. I. Tchaikovsky se mostraram muito ‘generosos’ em sua utilização.O crescimento dos grupos das madeiras, de geralmente dois para três ou quatro instrumentistas em cada, possibilitou torná-los naipes autônomos. No caso dos fagotes, acresce que sua extensão é ampliada nas duas direções: através do aperfeiçoamento na construção, para a região aguda, e, através do contrafagote, para a região dos extremos graves. O Requiem de G. Verdi, a Symphonie fantastique de H. Berlioz ou Till Eulenspiegel de R. Strauss são exemplos do destaque do naipe como um conjunto autônomo.

No século XX, com sua enorme variedade estilística, os recursos virtuosísticos do fagote são explorados ao máximo. I. Stravinsky é um dos compositores com uma preferência pelo fagote. Na Sagração da Primavera, estreada em 1913, com seu imenso corpo orquestral, o primeiro fagote abre a obra com um extenso e dificílimo solo na região superaguda, desafiando não só todos os fagotistas, mas também tudo o que já havia sido escrito até então. Já D. Shostakovitch usou muito o fagote nas suas sinfonias para expressar atmosferas ameaçadoras e desoladas. Em obras com cores nacionalistas, como, por exemplo, de B. Bártok e de Z. Kodály, o fagote às vezes é utilizado como representante de um dos instrumentos de palheta dupla tradicionalmente usados para a entoação ou o acompanhamento de cantos folcóricos.

1.2.2 Na música de câmara

Existem inúmeras formações de música camerística exclusivamente compostas por instrumentosde sopro que, quando não escritas para um só naipe, quase sempre incluem o fagote: trio de oboé,clarineta e fagote (trio d’anches) ou com flauta no lugar do oboé, trio de duas clarinetas e fagote,quarteto de madeiras (flauta, oboé, clarineta, fagote), quinteto de sopros e outras mais, todas comseu respectivo e vasto repertório. Em formações numerosas, como nas Serenatas e Divertimenti do classicismo, o fagote é empregado tanto ao lado de instrumentos de sopro como de cordas. Uma das primeiras obras camerísticas a explorar suas possibilidades virtuosísticas foi o Octeto em F maior op. posth. 166 de F. Schubert, de 1813, obra desafiadora, ainda mais quando consideradas as limitações técnicas do instrumento na época. Neste século, mais precisamente a partir da Primeira Guerra Mundial, muitos compositores privilegiaram obras para formações de música de câmara, por elas poderem ser realizadas com menos recursos e apresentadas em mais lugares. A História do Soldado de I. Stravinsky faz parte desta concepção, reunindo sempre um instrumento agudo e um grave de cada grupo orquestral: das cordas, o violino e o contrabaixo, das madeiras, a clarineta (que tem maior extensão do que a flauta) e o fagote, dos metais, o trompete e o trombone, além da percussão.

1.2.3 Enquanto solista

Em comparação com vários outros instrumentos é relativamente rara a possibilidade de escutarmos o fagote como instrumento solista. Existe, porém, um repertório grande. Não é fácil estabelecer quais foram as primeiras obras escritas para o fagote como solista, seja em obras sem acompanhamento ou com acompanhamento de piano/baixo contínuo ou de orquestra, pelo simples fato de ser difícil determinar o “ano de nascimento” do fagote. Existem algumas obras da primeira metade do século XVII como, por exemplo, a Sonata concertante (1621) de D. Castello ou a Sonata sopra La Monica (1651) de P.F. Böddecker. Todavia, elas, como também a primeira peça encontrada para fagote sem acompanhamento, a Fantasia per fagotto solo, de Selma y Salaverde em Canzoni, fantasie e correnti (1638) e as nove sonatas de G. A. Bertoli (ou Bertali) em Compositione musicale17 (1645), foram escritas para o dulzian, precursor do fagote com somente duas chaves e extensão de dó 1 a ré 2. Por volta de 1700, os compositores já podiam contar com um instrumento mais expressivo e com extensão maior. Os 39 concertos para fagote18 de A. Vivaldi, dois deles inacabados, exigem um domínio técnico e sonoro bastante avançado. Entre o gênero das sonatas, vale a pena citar as compostas por G. Ph. Telemann (explorando efeitos de eco), Joh. Fr. Fasch, J. E. Galliard e J. B. de Boismortier19.

Durante o classicismo, o fagote gozou de uma certa popularidade, o que se expressa nas centenas de concertos existentes, porém geralmente escritos por fagotistas da época ou por compositores que hoje não são muito tocados. É por isso que a obra de W. A. Mozart ganha importância e fama. Entre os outros compositores significativos, na maioria das regiões da Boêmia ou das de língua germânica, destacam-se C. Stamitz, Joh. B. Vanhal, Joh. Chr. Bach, Joh. Chr. Vogel, Joh. A. Kozeluch, F. V. Krommer e F. Devienne. Este último também compôs Seis Sonatas op. 24, fato raro na época.

Entre 1800 e 1830 foram escritos concertos que hoje fazem parte do repertório de todos osfagotistas, o Concerto em F maior op.75 de C. M. v. Weber, o Andante e Rondo Ungarese op. 35 (1813) do mesmo compositor, o Concerto em F maior (1805) de Joh. N. Hummel e outros de F. Danzi, Fr. Berwald etc.; já nas décadas seguintes, a produção foi pequena. Em contrapartida, surgiram muitos métodos, estudos e material didático em geral.20

No século vinte, a produção de obras para fagote é vasta e bastante diversificada. Surge uma escrita especificamente francesa que valoriza as características do modelo de fagote usado na França, movimento que será examinado mais detalhadamente a seguir. Enquanto na primeira metade do século, dentro e fora da França, as novas exigências para o fagotista se limitavam ao uso do registro dos extremos agudos, as décadas seguintes foram marcadas pela busca de novos efeitos sonoros até então desconhecidos. O resultado desta busca foi uma gama de novas técnicas, para cujo estudo e organização o trabalho de Bruno Bartolozzi21 foi decisivo. Nele, o autor trata das possibilidades de exploração dos monofônicos não empregadas na técnica tradicional, como mudança de timbre numa mesma nota, produção de quartos-de-tom ou microintervalos (por manipulação no orifício, adição de chaves ao dedilhado comum ou mudança da pressão da embocadura), das possibilidades de exploração dos multifônicos (por dedilhados especialmente elaborados ou por mudança de embocadura para produzir harmônicos) e ainda apresenta efeitos como glissando, frullato, vibrato anormal e tremolo, gerados com o auxílio da língua, dos lábios, da musculatura abdominal e pelos dedos.22 Novos efeitos podem ainda ser obtidos através do uso das chaves, do tudel sem a palheta, ou somente com a palheta, cantando no instrumento e ainda pela inclusão de elementos coreográficos. Entre as obras que fazem uso destes recursos estão Dialogue de Karkoschka, Collage de Bruno Bartolozzi, Chewing Basson Burger e Perfugio de Knut Sonstevold, Monólogo de Isang Yun e Sand for Basson de Dagfinn Koch, algumas delas empregando o fagote junto a fitas pré-gravadas ou live electronics. Ao lado destas obras, existem outras num estilo neobarroco ou voltadas para o classicismo, como, por exemplo, as Variações sobre uma arieta de Pergolesi de Otmar Nussio.

Como já foi mencionado, no século XX a escrita para o fagote francês difere daquela para o fagote alemão, o que pode chegar a ponto de tornar desinteressante a realização, no sistema alemão, de obras originalmente compostas para o sistema francês, pois o resultado sonoro não corresponde ao esforço técnico e físico despendidos. Já as obras escritas para o fagote alemão podem ser executadas, sem desvantagem, pelo fagote francês, a não ser que elas utilizem multifônicos cuja notação tenha sido feita através de especificação dos dedilhados. Mesmo nesse caso o fagotista do modelo francês pode procurar conseguir efeitos sonoros similares através de dedilhados diferentes.

12 É possível produzir notas mais agudas usando técnicas comparáveis ao flageolett dos instrumentos de cordas.

13 Hary Schweizer, em Brasília, fabrica fagotes com madeira nacional, usando imbuia.

14 Outros autores, baseando-se em menor número ou outros critérios, chegam a outras divisões de registro.

15 É curioso que os primeiros trechos orquestrais solo para fagote surgem só depois do fagote ter sido usado como solista com orquestra, como nos Concertos de Vivaldi.

16 Encarte do CD Fagottisima nova (Gürzenich Fagottquintett), texto de introdução, sem contagem de páginas. MDG

17 Segundo William Waterhouse, trata-se da primeira coleção de sonatas para um instrumento com acompanhamento de baixo contínuo. THE NEW GROVE, Dictionary of Music and Musicians. Edited by Stanley Sadie. London: Macmillan 1980, vol. 2, p. 276.

18 Esse número foi superado somente pelos concertos para violino.

19 O Concerto para Violoncelo ou Viola da Gamba ou Fagote op. 26 de Boismortier é considerado o primeiro concerto para um instrumento solo escrito por um compositor francês. Encarte do CD Les bassons de l’Operá. dQM 6995 Paris, 1998.

20 MUSIK IN GESCHICHTE UND GEGENWART (MGG). Allgemeine Enzyklopädie der Musik. Editado por Friedrich Blume. 17 vol. Kassel 1989, verbete ‘Fagott’, coluna 290.

21 BARTOLOZZI, Bruno. New Sounds for Woodwind. London: Oxford University Press 1982.

22 Esta técnicas são ensinadas em PENAZZI, Sergio. Metodo per Fagotto. Coleção Bruno Bartolozzi - Nuova tecnica per strumenti a fiato di legno. Milano: Edizioni Suvini Zerboni (sem data).

 

 

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